O americano Noam Chomsky tem se notabilizado como ativista do anarquismo. É provável que nenhum outro intelectual do país dê tamanha visibilidade a essa tradição.
Essa posição heterodoxa o aproximou do senador Bernie Sanders, que perdeu para Joe Biden a chance de ser o candidato democrata à Casa Branca. Não que Sanders seja um anarquista, mas é aquele que ocupa um nicho mais à esquerda da política do país.
Curiosamente, na linguística, área de estudo que o consagrou a partir dos anos 1950, Chomsky pode ser considerado a face conservadora. Suas teorias foram assimiladas mundo afora e ocuparam o “mainstream acadêmico”, como já escreveu Hélio Schwartsman, colunista deste jornal.
Entre outros objetivos, o recém-lançado “Linguagem - A História da Maior Invenção da Humanidade”, de Daniel L. Everett, se propõe a demonstrar a inconsistência dos pressupostos de Chomsky.
O mais famoso dos linguistas defende a existência de uma predisposição genética entre os humanos para adquirir a linguagem. Outro postulado é que um conjunto de regras que são comuns a todos os idiomas guiam a construção da linguagem.
Em linhas gerais, a linguagem, segundo Chomsky, está fortemente associada a regras e a princípios hierárquicos, o que nos leva à gramática.
Everett responde. “A visão de Chomsky de que a linguagem é nada mais nada menos do que uma gramática recursiva é altamente peculiar”, escreve o autor, também um linguista americano.
A linguagem, diz ele, “é uma combinação de forma, gestos, significado e altura da voz”. “A gramática auxilia a linguagem, não é a própria linguagem.”
Além disso, Everett ressalta que a linguagem é modelada por psicologia, história e cultura. Ou seja, reduz a importância do tal componente genético de que fala Chomsky.
Páginas depois, essa argumentação se estende às deficiências que afetam a linguagem. De acordo com o autor, não existe um distúrbio hereditário específico da linguagem porque não há um módulo do cérebro voltado exclusivamente a essa função. “A linguagem é mais do que o cérebro”, diz Everett. “É uma função do corpo inteiro”.
Essa não é exatamente uma abordagem inédita. O trunfo desse livro é conciliar didatismo e atenção ao detalhe para mostrar as fragilidades do “mainstream” da linguística.
Dessa forma, Everett dialoga com o especialista e com o leigo que se interesse pelo tema.
Mas a excelência da obra vai além do nocaute em Chomsky —já era hora, comprova o autor, do reverenciado linguista repensar suas proposições.
Baseado em evidências da paleoantropologia, que estuda os fósseis dos hominídeos, Everett contesta a versão habitualmente aceita de que a linguagem nasceu com o Homo sapiens. Surgiu antes deles, na verdade, há mais de 1,5 milhão de anos, com o Homo erectus.
Num dos trechos em que combina erudição e um toque de humor, ele afirma que “os Homo erectus foram a maravilha insuperável da sua época”.
Os erectus desenvolveram cultura, o que implica o surgimento de símbolos e significados. E, se eles tinham símbolos, criaram uma linguagem.
Como fez mestrado e doutorado em linguística pela Unicamp e conviveu com índios, Everett usa situações da cultura brasileira para ilustrar suas teses, o que aproxima o leitor local das suas ideias.
“Linguagem” tem vocação para se tornar um clássico da área. Chomsky deveria ler.
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