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Poesia de Carlos de Assumpção é música retinta de dor e luta

Nada, a não ser o racismo, poderia justificar o apagamento continuado deste poeta até seus 92 anos

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Lívia Natália

Poeta e professora de teoria da literatura do Instituto de Letras da UFBA

Não Pararei de Gritar

  • Preço R$ 49,90 (176 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Carlos de Assumpção
  • Editora Companhia das Letras

Quem caminha entre os sobejos do racismo à brasileira conhece a força dos apagamentos impostos a nós. Carregamos corpos eivados de cicatrizes, às vezes invisíveis, da luta para sobreviver ao risco diário de sermos negras e negros 24 horas por dia. Mas, como dizem os antigos, não há mal que para sempre dure e, hoje, ouvimos, vigoroso e definitivo, o grito-poesia de Carlos de Assumpção.

Este tambor já antigo nos oferta uma literatura sincopada em forma de música ancestral, retinta de dor e luta. Enegrecidas e engrandecidas, no couro deste velho instrumento, dançam palavras trançadas em escolhas poéticas únicas. Suas imagens delicadas, sutis e certeiras nos tocam as feridas que, mesmo saradas, teimam em sangrar: “Não me pedem documentos/ não me perguntam nada/ basta a minha cor.”

Esta conclusão do poema "Crime", um dos primeiros do livro "Protesto", de 1982, se reencena hoje, a cada 23 minutos, quando um jovem negro é assassinado nas ruas do Brasil, isto segundo dados da CPI do Senado sobre o assassinato de jovens. A mão armada do Estado ainda alveja nossos corpos nos de repentes da vida e “duma viatura/ saltam sobre mim/ vários policiais”.

Esse negricídio —literal ou alegórico— é um dos temas que mais fortemente aparecem na escrita de Assumpção, porque atinge a vida de pessoas negras. Afinal, nada, a não ser a mão (in)visível do racismo, poderia justificar o apagamento continuado deste poeta que, finalmente, publica uma histórica reunião de seus poemas aos 92 anos.

Quanto ainda se tem que aguentar, como diz ele em "Autorretrato", das violências sofridas “nesta selva branca”? Muito. Por isso, antevendo a longa demora para que seu brado negro nos alcançasse, ele avisa no poema "Protesto" que “mesmo que voltem as costas/ às minhas palavras de fogo/ não pararei de gritar/ não pararei/ não pararei de gritar”.

E o seu corpo-tambor vocaliza, em poemas como "Batuque", ricas opções estéticas pela assonância e aliteração que nos fazem, na carne dos versos, sentir a força da música.

Aos poucos, conhecemos a amplitude de seu texto, onde podemos ver argutas releituras, como o desexílio no poema "Raízes", no qual o eu-poético escrevivente em lugar de ir-se embora pra Pasárgada, como dizia o inolvidável poeta Manuel Bandeira, traça o seu caminho de volta para casa, livre de dores e angústias, e se encontra, entre os orixás, em vida plena e frutificada em beleza.

Em seus poemas, a memória dos ancestrais permanece constantemente retomada pelas imagens dos seus pais, dos deuses iorubanos e a partir de personalidades afetivas como a Tia Maria, benzedeira que, com suas mãos escuras, desfazia todo os males. “Mau‐olhado quebranto/ espinhela caída/ todos os males/ naquelas escuras mãos de fada/ quanto poder havia/ Tia Maria deve estar agora no Orun/ convivendo com os ancestrais.”

Assumpção, tal qual um antigo tambor, guarda sons inauditos e projeta sons futuros, se deixa a nós como herança, o poeta, quase centenário baobá, lança a nós, como um grito final —por ora— a pergunta que nos atravessa. “Quem mandou matar Marielle/ quem mandou matar Marielle/ a nossa nova Dandara/ quem mandou matar Marielle /a enviada de Ogum?”

Quantos de nós serão precisos para abraçar a largura ancestral deste robusto poeta-baobá? Que venham todas, todos! Que nos abriguemos sob a longa sombra de sua sabedoria, que nos banhemos em suas palavras de fogo. Velho poeta, não havemos mais que aguardar o retorno de Zumbi, tão proclamado nos seus versos. Ele já está entre nós!

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