Conheça o poeta negro de 92 anos comparado a Drummond e João Cabral

Quase desconhecido, Carlos de Assumpção criou obra potente sobre a resistência negra no país

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O poeta Carlos de Assumpção, 92, em sua casa em Franca (SP) Ricardo Benichio/Folhapress

Alberto Pucheu

[RESUMO] Quase desconhecido no meio literário, Carlos de Assumpção, 92, criou obra potente sobre a resistência negra no país, num patamar cujos poemas se igualam ao melhor de Drummond e João Cabral, segundo professor.

“Há muitas histórias/ Sobre os meus avós/ Que a História não faz/ Questão de contar”, escreve Carlos de 
Assumpção no poema “Meus Avós”. Nascido em 1927 em Tietê (SP), este poeta, negro, de 92 anos, vive há décadas em Franca, no estado de São Paulo. Veio de uma família, segundo ele mesmo, paupérrima. 

É neto de Cirilo Carroceiro, beneficiado pela Lei do Ventre Livre (1871), analfabeto, que lhe contava, desde a infância, à beira de uma fogueira no quintal, histórias testemunhais da escravidão, que se contrapunham ao que aprendia nos livros da escola. 

O poeta é filho de um pai igualmente analfabeto, exímio contador de histórias, e de uma mãe alfabetizada, que trabalhava cozinhando e lavando roupa para fora, sendo, ainda, uma amante da poesia, dedicando-se a ela a ponto de ensaiar poemas com as crianças da Sociedade Beneficente 13 de Maio.

Foi com essa família, fabuladora e politizada (integrantes da Frente Negra Brasileira e da sociedade citada acima), em que a transmissão oral da história familiar se confundia com a do país, que seu afeto, pensamento e imaginação se formavam, tomando gosto pela leitura com os livros que a mãe trazia da biblioteca da igreja.

A paixão pela poesia se expandia ao ouvir os poetas populares de sua cidade e das vizinhas. Depois de ter passado por inúmeros subempregos —por exemplo, ajudante de caminhoneiro— fez o curso normal, tornando-se professor para crianças pelo interior de São Paulo, até consolidar sua vida em Franca, onde, adulto, cursou as faculdades de letras e direito. Sabendo de cor inúmeros poemas da língua portuguesa e de outras línguas, Carlos de Assumpção é memória viva da poesia.

Os versos que abrem este texto se repetem como um refrão no respectivo poema, trazendo uma compreensão poética de uma história a contrapelo, de histórias plurais passíveis de serem recontadas, em contraponto à história hegemônica. Nesse movimento, somos impulsionados a ler a urgência de um resgate deste poeta do silenciamento da história da poesia e do país. 

Autor de “Meus Avós” e “Protesto” (além de, por exemplo, “Cavalo dos Ancestrais”, “Eclipse”, “Poema Verídico” e “Que Negros Somos Nós”), Carlos de Assumpção está entre os poetas mais importantes de nossa tradição, do século 20 e de nosso tempo, em um patamar cujos poemas podem, sem nenhuma concessão, se igualar ao que há de mais significativo de Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar... 

Com uma diferença, entretanto, decisiva: a de poetizar nossa história a partir do testemunho dos negros, de um eu a um só tempo pessoal, histórico e político, desde o corpo e a memória de uma coletividade de vidas escravizadas, torturadas e assassinadas. 

Poderia dizer de sua poesia o que escrevi sobre “A Queda do Céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert: ela se coloca como uma fundação tardia do Brasil, sinalizando uma de nossas faltas fundadoras. Ela é uma aposta ética e política em um outro passado e em um outro presente em que os negros finalmente teriam direitos, visibilidade e dignidade. 

Em um de seus poemas, “Eclipse”, é tematizada a constatação sobre a perda da cultura negra, fraturada pela diáspora africana e pela quase impossibilidade de preservar seus nomes, suas línguas, suas tradições e sua autodeterminação na nova vida em movimento de negro brasileiro: “[...] Olho no espelho/ E não me vejo/ Não sou eu/ Quem lá está// Séculos de destruição/ Sobre os ombros cansados/ Estou eu a carregar/ Confuso sem norte sem rumo/ Perdido de mim mesmo/ Aqui neste lado do mar/ Um dia no entanto senhores/ Eu hei de me reencontrar”. 

Se esta é uma temática que se repete na poesia negra do país, o lamento do poeta dura pouco, afirmando radicalmente a possibilidade de sua cultura em nova situação logo no poema seguinte: “Eis que me reencontro afinal”. Carlos de Assumpção é antes o poeta que se reencontra no grito de protesto do que no lamento e na queixa.

Na contramão de uma história contada da submissão dos negros à escravidão, há o orgulho de uma outra história afirmado em “Meus Avós” e nessa poesia de modo geral. Seus poemas são um modo de reescrever a história, valorizando não a humilhação e o sofrimento, mas, sobretudo, a revolta de quem não se curva ao dominador. 

No poema mencionado, apesar da crueldade sofrida, foram, sobretudo, os negros que construíram o país, que lutaram contra a escravidão, que, insubmissos, mataram feitores e senhores, que, insubordinados, fugiram em busca de sua liberdade. 

Cria-se, assim, uma fratura no tempo em que se vive para, sabendo da necessidade da flexibilização da historicidade, ler o passado de outro modo, mostrá-lo não como imutável, mas enquanto uma construção passível de ser relativizada e alterada em nome dos que foram tornados invisíveis. 

Nessa poesia, age-se contra o tempo em que se vive, em busca de uma vida com mais direitos, de colocar a história a serviço da vida e a favor de um tempo mais digno por vir. Não à toa, seu poema mais conhecido intitula-se “Protesto”, e a palavra mais repetida em seus poemas é “grito”.

“Protesto” foi escrito em 1956 e falado pela primeira vez em público em 1958, na Associação Cultural do Negro (ACN), em São Paulo. Também em 1958, foi impresso no primeiro livro dos Cadernos de Cultura da ACN. Desde então, foi dito e recitado diversas vezes para auditórios cheios, tornando-se o poema mais admirado por certa geração do movimento negro e por alguns poetas negros subsequentes.

É interessante contrapor a imediata acolhida do poema dentro dos movimentos sociais à cegueira da crítica, do meio jornalístico e editorial em relação a ele. Por dificuldades financeiras de seu autor e pelo desconhecimento geral da mídia e do meio editorial a respeito do circuito da poesia, livros do poeta só apareceram,  em pequenas edições feitas por amigos, em 1982 (ano em que foram publicados  “Protesto”  e “Protesto e Outros Poemas”). 

Quase quatro décadas depois, o poema “Protesto” continua relegado à ignorância generalizada. Como, senão pelo racismo de nossa história, um poeta da estatura de Carlos de Assumpção possa ser quase inteiramente desconhecido de outros poetas, críticos, jornalistas, intelectuais, antologistas de poesia e leitores em geral? 

Conheci “Protesto” em junho de 2019, quando fazia uma pesquisa para compor a revista Cult Antologia Poética. Procurando na rede o que não conhecia, deparei-me subitamente com um vídeo caseiro do poeta falando, magnificamente, esse magnífico poema.

Desde então, venho tentando divulgar seus versos, tendo feito um longa metragem amador com ele, “Carlos de Assumpção: Protesto”, que em breve estará no YouTube. Eis as palavras iniciais do poema:

“Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar

Senhores
Eu fui enviado ao mundo
Para protestar
Mentiras ouropéis nada
Nada me fará calar

Senhores
Atrás dos muros da noite
Sem que ninguém o perceba
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo
Reúnem-se em minha casa
E nos pomos a conversar
Sobre coisas amargas
Sobre grilhões e correntes
Que no passado eram visíveis
Sobre grilhões e correntes
Que no presente são invisíveis
Invisíveis mas existentes
Nos braços no pensamento
Nos passos nos sonhos na vida
De cada um dos que vivem
Juntos comigo enjeitados da Pátria
[...]”

Impossível não pensar que o final dos anos 1950  é o momento tanto em que a poesia concreta começa a fazer valer seus preceitos vanguardistas quanto da construção de Brasília

Os versos de Carlos de Assumpção são, antes, exemplos de uma insurreição poética dos operários, de uma poesia de luta dos que viveram e vivem a dor histórica de nosso país e voltam-se para uma poesia fortemente histórica, em versos e poemas que trazem marcas épicas para a lírica, soando “o grito da coisa viva do atual que não finda”, nas palavras do professor e poeta Roberto Corrêa dos Santos.

Na ocasião, também é significativa a presença do poeta em jornais do movimento negro operário, como no Niger, do Sindicato dos Trabalhadores em Construção Civil, desdobrando o vínculo entre poesia e política.

Além desses poemas grandiosos em que o “eu” e as designações familiares se confundem com uma história a contrapelo do país, há muitos outros em sua obra, de circunstância (em que a realidade oferece a ocasião e o tema específicos enquanto pontos de partida), que se fazem desdobramentos de palavras oriundas da escravidão, sinalizando inúmeros casos habituais e atuais de racismo sofrido pelos negros, com o intuito de efetivar no leitor uma consciência da violência cotidiana. 

Tomar, portanto, o racismo como tema é marcar o ponto de inflexão do lugar desde o qual um negro escreve, visando, a partir do que sofre, buscar a transformação. 

Diria que há ainda muitos poemas que podemos chamar de intermediários, que, criando outro grupo, fazem uma espécie de mediação entre os dois anteriores.

Chamo a atenção também aos poemas com ressonâncias diretamente africanas e aos poemas seriais dos tambores, berimbaus, batuques, que ritmam o grito dos que “estamos cansados de tanta dor”, dos que sabem que “ninguém compreende nossa mensagem de dor”.

Há muitos anos, fui à casa de uma amiga trabalhadora rural com ensino apenas primário. Lá havia dois livros na estante da sala: um de Fernando Pessoa, outro de Drummond. Dei-me conta de que, em nossa língua, os dois poetas são, de fato, aqueles que mais falam para todos e qualquer um, da trabalhadora rural ao intelectual, do operário ao artista, da trabalhadora doméstica aos profissionais liberais.

A poesia de Carlos de Assumpção é das poucas em que o mesmo se sucede. Ter ficado três dias inteiros com ele, entrevistando-o em sua casa, convivendo com ele em sua cidade, foi um antídoto para o que hoje vivemos no país. Poderia dizer que Carlos de Assumpção é o país que todos deveriam almejar.

Um poeta, uma pessoa, com capacidade imensa de gerar admiração e amor em torno dele. Tudo nele é generosidade, carinho, afeto, inteligência, alegria e vitalidade. Desde que, há poucos meses, conheci sua poesia, fazer o registro dele se tornou para mim uma urgência histórica.

Colocar sua obra em evidência pública, inserindo-a, ao menos, em certo meio da poesia brasileira —mas querendo também ultrapassar o que se chama de meio da poesia—, é um desejo imediato, diria mesmo que uma obsessão. 

Um desejo e uma obsessão, penso agora, de um outro país, de um país Carlos de Assumpção. Dos seus 92 anos, farto de dor histórica, “sob o peso de tanta dor, tanta miséria”, mas pleno de vitalidade para a necessária intervenção política, ainda nos presenteia com poemas inéditos, como este, escrito neste ano de 2019:

“Quem mandou matar Marielle
A nossa nova Dandara
Quem mandou matar Marielle
A enviada de Ogum

Quem tem ceifado tantos sonhos
Quem tem coberto todo o país
Com tantas mortes sem explicação
Quem tem matado tanta gente inocente e culpada

Há no ar silêncio enorme
Não há nenhuma resposta
Será que a justiça dorme
Ou a justiça está morta”

Leia abaixo o poema "Meus Avós", de Carlos de Assumpção

Os meus avós foram fortes
Foram fortes os meus avós

Orgulho-me dos meus avós
Que outrora
Carregaram sobre as costas
A cruz da escravidão

Orgulho-me dos meus avós
Que outrora
Trabalharam sozinhos
Para que este país
Se tornasse tão grande
Tão grande como hoje é

Os meus avós foram fortes
Foram fortes os meus avós

Este país meus irmãos é fruto
Das sementes de sacrifício
Que os meus avós plantaram
No solo do passado

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Embora ainda não conhecessem
A nova terra
A que tinham sido transportados
Acorrentados como se fossem feras
Nos sinistros navios-negreiros
Embora ainda não conhecessem
A nova terra
Os meus avós fugiam das fazendas
Cidades bandeiras e minas
E se embrenhavam nas florestas
Perseguidos por cães e capitães-de-mato

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

E a história
Dos que desesperados
Se atiravam dos navios
No abismo do oceano
E eram acalentados 
Por Iemanjá

E a história
Dos que enlouquecidos
Gritavam em vão
Chamando a mãe África
Saudosos da África
Ansiosos por estreitar
De novo nos braços
A velha mãe África

E a história
Dos que morriam de banzo
Dos que se suicidavam
Dos que recusavam
Qualquer alimento
E embora ameaçados
Por troncos e chicotes
Não se alimentavam
E acabavam morrendo
Encontrando na morte afinal
A porta da liberdade.

E as fugas em massa
Planejadas na noite das senzalas

E os feitores
Mortos nos eitos

E os senhores
Mortos nas casas grandes
E nas tocaias das estradas

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz 
Questão de contar

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Não me venham dizer
Que os meus avós se submeteram
Facilmente à escravidão

Não me venham dizer
Que os meus avós foram
Escravos submissos
Por favor não me venham dizer
Eu não aceito mentiras

Cortarei com a espada
Dos meus versos
A cabeça de todas as mentiras
Mal intencionadas
Com que pretendem humilhar-me
Destruir o meu orgulho
Falseando também
A história dos meus avós

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Apesar dos “castigos
Públicos para exemplo”

Apesar de flagelados
Na carne e na alma

Apesar de divididos
E oprimidos
Pelo regime aviltante

Apesar de todas
As crueldades sofridas

Os meus avós nunca
Nunca se submeteram
À escravidão

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram fortes
Foram bravos
Foram bravos foram fortes
Os meus avós

A quem ainda duvide
Aponto entre outras epopeias
A epopeia dos Palmares
Cujos quilombolas chefiados
Pelo herói negro Zumbi
Acuados pelos inimigos
Muito mais bem armados
E muito mais numerosos
Esgotadas todas as forças
Apagadas as esperanças
Despenham-se da Serra da Barriga
Preferindo a morte gloriosa
À infame vida de escravos

Aponto as revoltas malês
Quanto os batá-cotôs
(Tambores guerreiros)
Puseram em pânico
A cidade da Bahia

Aponto o quilombo de Jabaquara
Outro exemplo de bravura
Dos meus avós

Aponto as sociedades negras secretas
Que angariavam fundos
Para comprar alforria
De irmãos escravizados

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Meus avós foram fortes
Foram bravos
Foram bravos foram fortes
Os meus avós
 


Alberto Pucheu, professor de teoria literária da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é poeta e ensaísta.

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