Descrição de chapéu Livros Flip

Pedido de demissão de curadora aumenta pressão e incerteza sobre a Flip

Evento literário vive uma de suas maiores turbulências após saída de Fernanda Diamant

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São Paulo

Um dia depois do inesperado pedido de demissão de sua curadora, que sugere para o cargo uma mulher negra, a Festa Literária Internacional de Paraty enfrenta sua mais grave crise, sustando homenagens à controversa Elizabeth Bishop antes mesmo de o festival começar e levantando dúvida sobre a realização do evento com a pandemia.

Em nota sobre a decisão, na quarta, a ex-curadora Fernanda Diamant frisou que a festa havia sido remarcada para novembro à sua revelia e que, por causa da “condução genocida” da crise de saúde pelo governo, não havia nada a comemorar.

Ela, que não quis fazer novos comentários, propunha que a Flip se reinventasse sob o comando de uma curadora negra —algo que seria inédito nas quase duas décadas do maior festival literário do país.

Houve especulação de que a troca de comando seria um jogo de cartas marcadas, com novos chefes já definidos. Mas a verdade é que ninguém sabe ainda quem será o responsável —ou responsáveis— por tomar o lugar de Diamant, apesar de não ser de hoje que negociações estão em andamento.

pessoas andam em paraty
Movimentação no centro histórico de Paraty, durante a Flip de 2019 - Eduardo Anizelli/ Folhapress

O que está certo é que a homenagem à poeta americana Elizabeth Bishop —que seria a primeira estrangeira a ocupar o posto e foi alvo de fortes protestos— se encerra no ciclo online que discute a autora no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, até sexta que vem.

“Com uma nova curadoria, não faria sentido manter a homenagem. A Flip foi desenhada para preservar a autonomia e liberdade do curador”, diz Mauro Munhoz, presidente da Associação Casa Azul. A associação é responsável por toda a organização do festival, enquanto a curadora é uma pessoa contratada para fazer a seleção artística dos convidados.

Outra certeza, segundo Munhoz, é que o evento literário não vai acontecer do modo de sempre. Ele diz que já está claro que em novembro “não vai ser adequado provocar grandes aglomerações em Paraty”.

Sobre o resto ainda paira uma grande indefinição. O que está no horizonte para este ano é realizar um evento virtual com algum tipo de manifestação física, quase simbólica, em Paraty —arquiteto, Munhoz costuma reafirmar a intenção de desenvolver o território de forma sustentável com o projeto cultural.

É sobre esse próximo evento de feições incertas, em novembro, que atuaria o novo curador ou curadora. A sugestão de Diamant para que uma mulher negra assuma a função, diz ele, foi “muito valiosa” e está sendo levada em consideração em meio à “equação muito complexa” que se tornou a realização de uma Flip em tempos de coronavírus. Os recursos para o festival ainda não foram todos captados.

A mais recente pressão por uma curadoria negra encontra lastro na realidade —dos sete homens e três mulheres que já ocuparam a posição, todos eram brancos— e forte eco entre os escritores, estrelas principais do evento.

Marilene Felinto, colunista deste jornal que integrou a programação da última Flip, diz que a defesa de uma negra no cargo é um posicionamento político importantíssimo.

“E no caso da Fernanda, não é só retórica. Ela é uma pessoa interessada em alterar o estado de coisas no campo da cultura e da mídia, em incluir grupos que não têm reconhecimento no colonialismo patriarcal em que vivemos.”

Djamila Ribeiro, também colunista, viu no gesto um exemplo de uma atitude antirracista de uma pessoa privilegiada. “A postura da Fernanda mostra que entende o que é lugar de fala e entende o lugar social das mulheres negras”, diz.

“Vejo algumas pessoas brancas não entendendo [o conceito de lugar de fala], dizendo que queremos interditar o debate. A gente não quer interditar nenhum debate, mas que pessoas que tiveram menos oportunidades ocupem posições de destaque.”

Segundo a escritora Eliana Alves Cruz, a reivindicação por curadoria e presença negra significativa na Flip é antiga. “Um público novo e ávido por consumir outras narrativas invadiu Paraty. No entanto, nesta edição, vimos com apreensão escolhas que novamente pareciam escantear todos e todas nós. A decisão da Fernanda Diamant apenas vem ao encontro de um clamor antigo.”

Jeferson Tenório diz ver como positiva a troca da curadoria, embora a considere tardia. “A diversidade entre convidados aumentou. No entanto, há na Flip uma fórmula que volta e meia parece isolar o cenário social e político”, diz o escritor, ao se referir à escolha de Bishop como homenageada.

“É o exemplo que todas as feiras literárias devem seguir”, diz a escritora e atriz Elisa Lucinda. “Fui a única negra em feiras literárias por muito tempo.”

“A impressão que eu tenho é que não tinha batido na cabeça de muita gente branca a dimensão holocáustica da nossa tragédia [dos negros]. Um dos aprendizados que a pandemia trouxe foi o começo de uma escuta por parte de uma turma branca bacana da nossa sociedade, que não tinha ainda se tocado.”

Já a escritora Cidinha da Silva, cética com a troca de comando, diz que “pelo que vimos na imprensa, a passagem da Fernanda Diamant pela curadoria foi turbulenta por ela mesma, pelas escolhas feitas e a forma como as conduziu”.

“A pandemia tem tornado turbulenta a vida de todo mundo. Vejo a saída de Diamant como a de uma profissional que avalia o momento atual da carreira e deve ter outras coisas mais interessantes e menos desgastantes a realizar. O estardalhaço é lançar essa quase premonição de que o lugar vazio deveria ser ocupado por uma mulher negra.”

Entre líderes do mercado editorial, que têm na Flip uma vitrine para seus autores, as reações são mais conciliatórias. Eduardo Lacerda, editor da Patuá, diz que a curadoria de uma mulher negra pode influenciar grandes casas a dar mais espaço aos escritores negros.

“A importância que a Flip atingiu pode ser medida por esse debate. As pessoas reagem às escolhas”, afirma Flávio Moura, editor da Todavia e também ex-curador do evento. “É um sinal de que a Flip tem uma centralidade saudável. Desejo que o impacto da pandemia seja o menor possível, porque a Flip não pode correr o risco de perder esse espaço que ocupou.”

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