Festival de Veneza espanta celebridades, mas inaugura modelo pós-coronavírus

Primeiro grande evento cinematográfico a ser feito em presença após a Covid, mostra pode vir a ser tida como um modelo

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Veneza

Ao ver uma mulher alta, magra, maquiada, vestido e salto alto caminhar pela rua que liga as principais atrações do Festival de Veneza, uma passante não teve dúvida —sacou o celular do bolso e tirou uma foto. Imediatamente, a outro, que também fotografou, perguntou quem era aquela. “Radha Mitchell”, respondeu o rapaz, fazendo surgir na cara da mulher uma careta de indiferença.

A cena resume o sentimento do público acostumado com um festival em que celebridades convivem de perto com curiosos e autógrafos. A esses não incomoda ter de usar máscara debaixo do sol quente ou durante as duas horas do filme, o que chateia mesmo é a falta de famosos internacionais, impedidos de vir à Itália por causa das restrições causadas pela pandemia.

cate blanchett
A atriz australiana Cate Blanchett, que presidiu o júri do Festival de Veneza - Tiziana Fabi/AFP

Como se não bastasse a ausência de um furacão VIP, como foi Lady Gaga em 2018, ou de estrelado cult, como Joaquin Phoenix no ano passado, os poucos que passam são irreconhecíveis com seus rostos tampados pela máscara. Uma jornalista relata ter visto Matt Dillon, que faz parte do júri, passar tranquilamente pela via Marconi sem ser reconhecido, disfarçado sob a máscara.

Outra frustração de origem pandêmica é a impossibilidade do público de ver os desfiles no tapete vermelho, na entrada do Palazzo del Cinema. Era um dos mais acessíveis visualmente e, agora, para que não haja aglomeração entre fãs, está escondido atrás de altos tapumes.

“Aqui ficava sempre cheio, gente que vem para tirar foto, ver famosos, VIPs”, conta o aposentado Pittarello Lucio, morador de Veneza que, há décadas, circula de bicicleta com a mulher para acompanhar o clima “frizzante” que toma conta do Lido. “Agora, com todas essas barreiras, não se pode fazer nada. A Covid mudou muito, mas o certo é fazer esse controle mesmo.”

A vigilância, seja para curiosos, famosos ou quem está trabalhando, inclui passagem diária por termo scanner, máscara o tempo todo —as celebridades do tapete vermelho têm autorização para tirar brevemente, enquanto posam para fotos do lado de fora— e obrigatoriedade de reservar lugar para as projeções e todo tipo de evento, como as entrevistas coletivas diárias.

Para garantir a distância de ao menos um metro entre os participantes, a capacidade dos espaços caiu pela metade. A Sala Grande, onde acontecem as estreias oficiais, comporta 518 assentos, ante 1.031 em anos anteriores.

E, segundo a Biennale, que organiza o festival, neste ano foram vendidos 4.200 ingressos na primeira semana, cerca de 20% do ano passado. Entre delegações que representam filmes e distribuidores, o credenciamento caiu de 12 mil para 5.000.

Ainda assim, a mostra, iniciada no último dia 2 e que terminou neste sábado, aconteceu. Coroando com o Leão de Ouro o filme "Nomadland", com Frances McDormand, foi o primeiro grande evento da indústria cinematográfica a ser realizado em presença depois da crise do novo coronavírus, um “milagre”, como definiu a atriz Cate Blanchett, presidente do júri.

A concretização do festival foi simbólica também para a Itália, um dos primeiros países atingidos pela pandemia, que registrou 35 mil mortes e teve um severo lockdown.

Especialistas comentam também que a competição com o Festival de Cannes, na França, impedido de acontecer em maio, quando a Europa começava a sair da quarentena, teria sido outro ingrediente impulsionador para os organizadores.

Salvo se for revelado nos próximos dias que casos de contaminação aconteceram nas últimas semanas, o evento pode mesmo ser considerado um modelo. O serviço de reserva de assentos fez sumir longas filas, a limpeza, em espaços fechados e abertos, como mesas, corrimões e grades, era ostensiva, e os vigias sanitários abordavam aqueles que escapavam das regras com gentileza.

“Quando houve o anúncio de que o festival iria acontecer, houve dois temores. De um lado, o medo da convivência com o vírus em um evento realmente grande, com pessoas de outros países. E, de outro, de que não conseguissem selecionar filmes interessantes”, diz a jornalista Stefania Ulivi, que há 27 anos cobre a mostra para o Corriere della Sera.

“No final, o balanço é positivo”, afirma. “A seleção, nessas circunstâncias, levou a uma renovação geracional e ao fato de haver oito mulheres entre os 18 competidores. Esperamos que isso não seja levado embora quando o vírus se for.”

E, por mais que causassem estranheza, cenas de festas, beijos e multidões nos filmes gravados no mundo pré-pandemia, conquistaram a identificação do público por abordarem temas como luto, perdas e memória e por se concentrarem em histórias de vida.

“Não acho que os filmes estivessem datados. A maioria foi atual e universal. Muitos foram editados e finalizados durante o lockdown e refletem um pouco disso e, fora da competição, há vários que nasceram durante esse período, como ‘Solitaire’”, diz Ulivi, em referência ao curta de animação de Edoardo Natoli.

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