Igreja desafia a pandemia para fazer o concerto que vai durar mais de 600 anos

Órgão que toca música composta por americano John Cage será acionado por sucessivas gerações ao longo dos próximos séculos

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Catherine Hickley
Halberstadt | The New York Times

Este ano, não houve Festival de Bayreuth, e nada de Mostly Mozart, Tanglewood ou Aix. Mas um concerto, em uma igreja medieval dilapidada no leste da Alemanha, não pôde ser cancelado, porque já tinha começado —mais de 18 anos antes que surgisse a pandemia do coronavírus. E seu final não deve acontecer até 2640.

No sábado, uma pequena multidão de entusiastas da música, todos mascarados, se reuniu na Igreja de São Burchardi, na cidade de Halberstadt, cerca de 200 quilômetros a sudoeste de Berlim.

A ocasião era a primeira mudança de som em quase sete anos no concerto mais lento do planeta, um recital de órgão de uma composição do americano John Cage. Era a 14ª mudança de acorde desde que o concerto começou, em 5 de setembro de 2001, no que teria sido o 89º aniversário de Cage, que morreu em 1992, aos 79 anos.

Rainer Neugebauer, professor aposentado de ciências sociais e diretor da Fundação John Cage de Órgãos, em Halberstadt, a organização responsável pela música, disse aos espectadores no sábado que “diferentemente da Olimpíada ou do Fórum Mundial de Davos, nós não podíamos adiar o evento”.

“A mudança de acorde tinha de acontecer”, ele disse. “A partitura assim ordena.”

Cage compôs a peça originalmente para piano, em 1985; a notação de tempo era “o mais lento possível”. Ele a adaptou para o órgão em 1987, e a composição passou a ser conhecida como “Organ²/ASLSP”.

Mas isso despertou questões. No piano, o som desaparece depois que uma tecla é premida; no órgão, notas podem ser sustentadas indefinidamente. Mas podem mesmo? E quando o organista precisar dormir, comer ou ir ao banheiro? E se ele morrer?

As questões ocuparam um grupo de compositores, organistas, musicólogos e filósofos, alguns dos quais colaboraram com Cage, em uma conferência na cidade de Trossingen, no sul da Alemanha, em 1998.

Eles desenvolveram a ideia de uma apresentação calibrada para durar tanto quanto a expectativa de vida de um órgão. O primeiro órgão moderno com teclado havia sido construído em 1361 em Halberstadt, pelo que se sabia –639 anos antes do início do século 21. Por isso, eles decidiram que a peça deveria durar 639 anos.

Já então, a ideia de que a a execução da peça perdurasse até 2640 parecia radicalmente otimista. Isso requereria transições entre gerações e também exigiria esforço e dinheiro. E a coisa parece ainda mais improvável agora, quando a pandemia nos fez perceber a fragilidade da vida e a ameaça da mudança no clima põe em questão a sobrevivência da humanidade.

Mas muita coisa pode mudar com o passar dos anos, como a história da Igreja de São Burchardi demonstra. Ela foi construída por volta de 1050; parcialmente destruída na Guerra dos 30 Anos, no século 17; desconsagrada em 1810 por Jérôme, o irmão de Napoleão Bonaparte e depois disso serviu como estábulo, destilaria e chiqueiro.,

Seu órgão não é um instrumento padrão operado por teclas. Tubos afinados de acordo com as notas da partitura são acrescentados ou subtraídos como requerido, de acordo com as mudanças de som. Não há um organista que requeira pausas para ir ao banheiro; os pedais que ativam os tubos são mantidos acionados por sacos de areia.

A cerimônia que acompanha cada mudança se tornou um ritual para os fãs da peça. Embora alguns dos participantes estrangeiros habituais não tenham podido comparecer no sábado, devido à pandemia, havia espectadores de países como a República Tcheca e a Dinamarca. A pequena loja de presentes da igreja faturou bem com a venda de máscaras de proteção.

O número de pessoas admitido à igreja foi restringido e por isso alguns dos espectadores acompanharam o momento em uma tela montada no pátio. Às 15h, o compositor Julian Lembke e a soprano Johanna Vargas, ambos usando luvas brancas, encaixaram dois novos tubos no corpo do órgão, afinados em sol sustenido e mi. Isso criou um novo acorde de sete notas, quando adicionados às cinco notas que vinham soando desde outubro de 2013.

Lembke disse em entrevista posterior que havia percebido “uma nova suavidade” no acorde, bem como um som mais denso.

A execução épica da peça ajudou a pôr Halberstadt no mapa, disse Neugebauer. Em comum com muitas outras cidades do leste da Alemanha, a população de Halberstadt está diminuindo e envelhecendo, mas Neugebauer estima que 140 mil pessoas a tenham visitado para ouvir a peça, desde que a execução começou.

“Não é um projeto para as massas”, ele disse. “Mas é um ponto de cristalização para a arte contemporânea. E traz pessoas interessantes a Halberstadt.”

Andreas Henke, o prefeito da cidade, disse que a maioria dos moradores de Halberstadt provavelmente não sabia coisa alguma sobre a peça e que aqueles que a conheciam a costumavam definir como “aquela cacofonia”. Mas ele acrescentou que “John Cage leva o nome de Halberstadt ao mundo”.

Ele disse que a execução da peça despertava “questões filosóficas sobre como encaramos o tempo”.“Estamos todos tão consumidos pelas nossas vidas e pelo trabalho diário”, ele disse. “Isso nos força a fazer uma pausa e desacelerar.”

“É muito especial, fazer parte de um projeto de arte que conectará gerações e durará gerações”, disse Henke. Ele disse que era “sua grande esperança” que o projeto persistisse até 2640.

A ameaça mais imediata ao projeto é banal, mas o afeta desde o começo –que o dinheiro acabe. “Às vezes dizemos que esse projeto só precisa de tempo e de ar, mas também precisamos falar de dinheiro”, disse Neugebauer.

Os custos operacionais diários são financiados quase exclusivamente por doadores privados, ele disse, que podem adquirir uma placa exibida na igreja e representando um ano de execução da peça.

O ano de 2580, por exemplo, foi adquirido por um casal identificado como Silvia e Jörg, porque marcará seu 600º aniversário de casamento. O Dresdner Kreuzchor, um famoso coral de meninos de Dresden, na Alemanha, ficou com 2539, para comemorar o milésimo aniversário de um evento central na história da Reforma Protestante. Cerca de US$ 1,2 milhão, ou R$ 6,44 milhões, foram arrecadados dessa maneira, disse Neugebauer, mas as doações vêm escasseando, recentemente.

Neugebauer disse que o projeto operava com recursos muito limitados e dependia da colaboração de voluntários, um dos quais ele mesmo.

“Dentro de três anos e meio, completarei 70 anos, e gostaria de parar”, ele disse. “Seria ótimo transferir isso à próxima geração em boa forma.” Se tudo correr de acordo com o plano, será a primeira de muitas transferências.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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