Encontrei “A Era dos Festivais - Uma Parábola”, de Zuza Homem de Mello, logo depois de me formar na faculdade. Fiquei deslumbrado com a riqueza de informações, os detalhes pesquisados com a minúcia de um apaixonado, a organização impecável.
Mais: o livro era encantadoramente bem escrito, charmoso e elegante. Mais ainda: Zuza tinha um ouvido treinado e aliava essa percepção elevada a um texto claro, em que traduzia as ideias musicais mais elaboradas de um modo muito objetivo. Revelava as canções por dentro. Traduzia. E seduzia.
Eu concluí minha faculdade com uma monografia sobre os festivais. Era um jovem deslumbrado pela música brasileira. “A Era dos Festivais - Uma Parábola” mudou a minha vida. Aquele apuro e aquela paixão impressas no livro me fizeram seguir adiante com a ideia de realizar um documentário.
Quando “Uma Noite em 67” começou a nascer, convidamos Zuza para ser consultor. Eu e Ricardo Calil, que dirigiu o filme comigo, mandávamos todas as pautas das entrevistas para ele. Era nosso porto seguro de conhecimento e nossa referência maior.
Zuza foi técnico de som no festival de 1967 e, ao longo dos anos, se tornou a maior autoridade no assunto. Deu um longuíssimo depoimento para o filme.
Num determinado momento, perguntamos: “Você viu o festival de 1967 por aquela televisãozinha na cabine de som. Era possível saber que você estava presenciando um momento histórico?”.
E ele respondeu: “Bom, eu sempre percebi de uma maneira muito nítida o que era um momento histórico. Eu só não percebi os momentos históricos quando eu não estava presente, evidentemente. O primeiro 'Fino da Bossa', para mim, foi um momento histórico. De tal forma que eu preservei a fita de som, eu não apaguei. E muitas outras ocasiões. Claro que você não pode prever todos os detalhes, mas você tem a sensação de algo no ar, que em outros casos não existe. Isso dá para perceber e é fundamental para quem, acho eu, para quem se dedica ao que eu me dedico. Se você não tiver essa percepção, você deixa escapar pelos dedos tudo o que você poderia ter visto, poderia ter registrado ou poderia guardar. Você tem que ter essa percepção, isso é insubstituível e não tem receita pra isso”.
Sem Zuza, não teríamos conseguido entrevistar Roberto Carlos e Paulinho Machado de Carvalho. Zuza era querido e respeitado por eles, assim como era por grande parte das pessoas que ouvem ou produzem música.
Uma canção não é somente uma sucessão de notas acompanhada por uma letra. A música brasileira traduz e amplifica nossos traumas coletivos, nossa diferença de classes, as pequenas e grandes alegrias, nossos anseios, nosso espírito, nossa história.
Zuza Homem de Mello, com sua escuta sensível e vasto repertório cultural, captava e traduzia toda sua complexidade: uma mudança de tom, uma citação, um arranjo criativo, uma inovação. O público precisa de um Zuza Homem de Mello para ampliar não só o conhecimento, mas toda essa sensibilidade.
Lembro de quando li “João Gilberto”, da coleção Folha Explica, escrito pelo Zuza. Toda a complexidade de João estava ali traduzida como um canto de sereia. Limpo, claro, sedutor. Ler e ouvir Zuza Homem de Mello transformou profundamente minha relação com a música. Não é exagero dizer que ele mudou a minha vida.
Semana passada, busquei na estante mais uma vez o meu exemplar surrado, marcado e anotado de “A Era dos Festivais - Uma Parábola”. Zuza havia aceitado participar do "Conversa com Bial", em que trabalho como roteirista. Sua entrevista estava marcada para o próximo dia 15. Estou com o livro ao meu lado nesse momento enquanto termino este texto.
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