Descrição de chapéu The New York Times

Tela de museu na Holanda é tão amada por ladrões que já foi roubada três vezes

Terceira desaparição de 'Dois Meninos Sorridentes com Caneco de Cerveja', de Frans Hals, foi no último mês de agosto

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Graham Bowley
The New York Times

“Dois Meninos Sorridentes com Caneco de Cerveja”, um quadro de Frans Hals, esteve em exposição em um pequeno museu da cidade de Leerdam, na Holanda, pela maior parte dos últimos 248 anos.

É preciso qualificar a sentença com o termo “pela maior parte” porque o quadro foi emprestado a outras instituições ocasionalmente, removido para sua proteção no período da ocupação nazista, e —como muita gente na cidade sabe— roubado três vezes.

quadro de meninos sorridentes
'Dois Meninos Sorridentes com Caneco de Cerveja', de Frans Hals, foi roubada três vezes de museu - Reprodução

Sua terceira desaparição aconteceu em agosto do ano passado, quando a obra, avaliada em US$ 10 milhões, foi roubada três dias antes do 354º aniversário da morte de Hals, deixando um vazio no espaço que ela ocupava na parede do Museu Hofje van Mevrouw van Aerden, uma casa de caridade para mulheres não casadas que também serve como espaço para exibição da coleção de arte de Maria van Aerden, que fundou a instituição no século 18.

“É aquele quadro especificamente que atrai o interesse, e não sei o motivo”, disse Christa Hendriksen, vereadora responsável pelos assuntos culturais em Leerdam, uma cidade de 20 mil habitantes mais conhecida por seus produtos de vidro. “Não tenho resposta para isso.”

É de fato surpreendente, e até misterioso, que qualquer obra de arte seja roubada múltiplas vezes. Será que as imagens do pintor ocultam alguma pista para um tesouro escondido, ou um código secreto? Ou será que o quadro é cobiçado por algum culto que tem Hals, ou quem sabe a cerveja, como sagrado?

Com certeza existiram outras obras de arte que parecem ter sido especialmente cobiçadas pelos gatunos.

Versões de “O Grito”, de Edvard Munch, foram roubadas de museus em Oslo em 1994 e 2004. “O Milharal”, de Jacob van Ruysdael, foi roubado três vezes de uma casa luxuosa ao sul de Dublin, em uma das ocasiões pelo Exército Republicano Irlandês, o IRA, na sigla em inglês.

“Jacob de Gheyn 3º”, um retrato pintado por Rembrandt, foi roubado tantas vezes da Dulwich Picture Gallery de Londres (quatro vezes de 1967 a 1983), que passou a ser conhecido como “Rembrandt removível”.

Mas especialistas dizem que, embora haja quem proponha a ideia de que os ladrões agem por encomenda de mercadores fascinados com a pintura da era de ouro holandesa, as motivações para os furtos são provavelmente muito mais banais.

As obras são tipicamente mercadorias bem conhecidas. Apostas seguras. Quadros cujo valor foi estabelecido pelos furtos anteriores e pelo fato de que a polícia se esforçou muito para recuperar. Em outras palavras, pode ser que “Dois Meninos Sorridentes com Caneco de Cerveja” tenha sido roubado de novo simplesmente porque foi roubado antes.

“Os ladrões sabem que podem obter dinheiro de alguém pelo quadro”, disse Christopher Marinello, fundador da Art Recovery International. “Conhecem o valor mínimo que a obra gerou. Sabem que ela pode estar assegurada.”

Arthur Brand, um detetive de arte independente que trabalha em Amsterdã, disse que os ladrões muitas vezes roubam obras-primas que possam usar como moeda de troca caso um dia venham a ser acusados de outros crimes. Assim, procuram informações na internet sobre roubos de arte famosos do passado.
“E esse é o caso que aparece quando você procura no Google”, ele disse.

No roubo de agosto, vídeos mostram duas pessoas se aproximando do museu em um scooter, no meio da madrugada. Uma das teorias sobre a operação é de que os ladrões tenham galgado o portão para o jardim dos fundos da edificação, arrombado uma porta traseira e subido as escadas até a sala em que o quadro ficava. O alarme disparou às 3h30 da manhã.

A polícia mais tarde encontrou uma corda cor de laranja amarrada a um mastro do lado de fora, que os ladrões podem ter usado para descer por um muro de tijolo de três metros de altura que era parte das fortificações originais da cidade, do jardim para o caminho abaixo.

O vídeo mostra duas pessoas partindo no scooter, poucos minutos mais tarde, uma delas segurando um objeto grande, como um quadro (a obra de Hals tem pouco mais de 60 centímetros de altura).

Quando o roubo foi descoberto, manchetes em todo o mundo o alardearam. O crime tinha todos os elementos que costumam despertar curiosidade –uma obra de arte famosa, uma antiga proprietária que foi uma viúva rica e roubos anteriores que envolveram um grande traficante de drogas holandês, pedidos de resgate e uma arapuca montada pelas autoridades para capturar os criminosos.

Mas em Leerdam, para onde, como os cisnes, o quadro roubado continua a retornar, a sensação é de perda, se bem que nada que se aproxime da histeria.

“Fiquei péssimo quando fui informado do roubo do quadro”, disse o prefeito Sjors Fröhlich, que expressou confiança nos esforços de recuperação da polícia. “Das últimas duas vezes, o quadro voltou”, ele disse. “Acredito de verdade que o podemos recuperar de novo.”

O site do museu, que está fechado para visitantes em função da pandemia, não faz menção ao roubo. Sua página de Facebook se concentra, em lugar disso, no trabalho de voluntários para manter o jardim da instituição e podar a amoreira e as demais plantas do pátio, em torno do qual dez mulheres ainda moram, em pequenas casinhas separadas construídas por volta de 1772 à margem do rio Linge.

O Museu Hofje serviu de local a casamentos e reuniões do Legislativo municipal, ao longo dos anos, e o domo característico do edifício principal domina a paisagem de Leerdam. (Os moradores locais chamam o conjunto de “o nosso Sacré Coeur”.)

A construção foi bancada pelo espólio de Maria van Aerden, viúva de um rico notário holandês que morreu em 1764 e determinou em seu testamento que atenção especial deveria ser dedicada à coleção de arte do finado marido. Ele tinha acumulado 42 obras de arte, muitas as quais de mestres da pintura holandeses.

O testamento estipulava a quantidade de carne, o número de pães e o volume de vinho branco a ser servido às moradoras “honestas e decentes” da instituição e que os quadros fossem mantidos “limpos e arrumados” na Regentenkamer, ou Câmara dos Regentes, no segundo piso.

Também determinava que a casa de caridade fosse dirigida por três regentes, todos descendentes da família Van Aerden. Mas recentemente, encontrar descendentes da família vem sendo difícil, de modo que só dois regentes administram o lugar, com a ajuda de voluntários.

A despeito de seu acervo impressionante, a casa de caridade só foi aberta ao público como museu pouco mais de dez anos atrás. E o quadro novamente roubado é a estrela do acervo.

Hals, em companhia de Vermeer e Rembrandt, foi um dos gigantes da era de ouro da arte holandesa. Conhecido pelos retratos de severos funcionários públicos e prósperos mercadores, ele também pintou figuras da vida das ruas que chamaram sua atenção na época, como a “Garota Cigana” ou “Malle Babbe”, a Maria Maluca.

Pintadas para venda, essas obras não encomendadas tinham técnica inovadora e senso de presença e de momento, como no caso dos dois meninos, um dos quais contempla risonho o caneco de cerveja.

O quadro foi finalizado por volta de 1628, quando Hals já tinha passado dos 40 anos. É cômico, mas porta uma advertência moral. A frase “contemplador de canecos” era usada para aludir a glutões ou a pessoas cobiçosas que sempre querem mais, e a imagem impressionava ainda mais ao retratar os bebedores como crianças.

“Não há tantos quadros assim de Hals nesse estilo, e esse é um dos primeiros, e uma peça incrível”, disse Anna Tummers, que fez do quadro uma das peças centrais de exposições que organizou como curadora do Frans Hals Museum.

Quando os nazistas invadiram a Holanda, em 1940, o quadro e o restante da coleção foram removidos da edificação, usada pelos alemães como quartel-general.

O quadro passou décadas emprestado a um museu de Roterdã, enquanto o Museu Hofje era restaurado, e depois foi exibido sem problemas até 1988, quando um homem mascarado arrombou uma janela na casa de uma das mulheres residentes no pátio. Ele amarrou a mulher do administrador do complexo e fez com que ela desligasse o alarme.

“Sob ameaça de uma arma de fogo, meu pai foi forçado a abrir a porta do museu”, disse Jos Slieker, o filho do administrador, que é secretário da sociedade histórica de Leerdam.

Slieker disse que seu pai conseguiu pressionar um segundo botão e acionar o alarme, mas o ladrão conseguiu fugir com o quadro de Hals e mais um, “Vista da Floresta com um Sabugueiro em Flor”, de Jacob van Ruysdael.

Três anos mais tarde, os dois quadros foram devolvidos ao museu, depois que um resgate de mais de 500 mil florins (mais de US$ 250 mil) foram pagos pela seguradora e pelas autoridades holandesas.

De acordo com a imprensa holandesa, os quadros haviam sido entregues a Klaas Bruinsma, um conhecido criminoso holandês, em pagamento de uma dívida relacionada a drogas, e, depois que Bruinsma foi morto a tiros diante do Amsterdam Hilton em 1991, o guarda-costas dele contatou as autoridades para negociar a devolução.

Um ano mais tarde, dois suspeitos, um comerciante de tapetes holandês e um conhecido ladrão alemão de obras de arte, foram detidos pelo roubo, depois que a namorada de um deles, que tinha dirigido o carro de fuga, se apresentou às autoridades. Os dois foram condenados e serviram sentenças de prisão.

Em 2011, os mesmos dois quadros voltaram a ser roubados. O alarme disparou às 3h. Testemunhas viram um carro —um BMW ou Mercedes de cor escura— escapando com os faróis baixos, e a polícia encontrou a moldura do quadro de Hals jogada em uma cerca-viva.

Os ladrões aparentemente tinham descoberto que era possível receber pagamento pela devolução de peças roubadas. A polícia recuperou as obras cinco meses mais tarde, depois de ser posta em contato com quatro homens que se dispuseram a negociar a devolução, por um preço —cerca de € 1,5 milhã, ou US$ 2 milhões.

Os investigadores fizeram com que um agente clandestino posasse como representante da seguradora do museu e, quando os quatro homens —todos da região de Amsterdã, um dos quais negociante de arte—, apareceram, todos foram detidos.

Os homens não identificaram quem cometeu o roubo, embora dissessem que planejavam dividir o dinheiro com o autor do roubo.

Nas duas vezes em que o Hals foi devolvido, o museu, demonstrando otimismo e respeito à tradição, voltou a exibir o quadro. “O testamento dispõe que a coleção deve permanecer intacta e ser exibida na casa”, disse Slieker. “Belas pinturas devem ser exibidas”, disse Guus Harms, o chefe dos voluntários do museu.

A polícia e o museu se recusam a delinear as melhoras na segurança adotadas depois dos roubos anteriores. Mas Slieker disse que o museu conta com alarmes e sensores de movimento. A coleção também só é exibida durante dois dias por semana, e as visitas só acontecem com a presença de um guia.

Mas o que fica claro é que a segurança existente, embora provavelmente adequada para um museu de cidade pequena, não é suficiente para proteger obras de arte de classe mundial. “Leerdam é muito pequena”, disse Joost Lanshage, porta-voz da polícia regional. “Não somos o Rijksmuseum [o museu nacional holandês]. O museu é pequeno.”

A boa notícia para o museu é que ninguém acredita que os ladrões serão capazes de vender uma peça tão conhecida no mercado aberto. Por isso, terão de tentar outra coisa, talvez oferecer a devolução da peça, em troca de um pagamento.

“Até o momento, nada ouvimos dos perpetradores”, disse Harms. Enquanto o museu espera, uma réplica do quadro foi pendurada na parede, porque as pessoas dedicadas à instituição acham muito sofrido ver aquele espaço vazio.

Sander van Betten, um investigador particular holandês, disse que as autoridades e as seguradoras de seu país relutam em pagar resgates, hoje, porque isso encoraja roubos. Em lugar disso, ele afirmou, os ladrões provavelmente roubaram as peças para usar como moeda de troca no submundo do crime —com valor, ele estima, de entre € 2,5 milhões e € 3 milhões, ou até US$ 3,6 milhões.

Quanto a isso, uma vez mais, a publicidade gerada por múltiplos roubos provavelmente trabalha em favor dos ladrões. Mesmo bandidos se preocupam com a autenticidade das peças e com não se deixarem enganar por uma falsificação, disse Van Betten.

Por isso o Hals, com seu histórico robusto de roubos no museu de Leerdam, será visto como valor garantido.

“É um quadro muito famoso”, disse Van Betten, “e todo mundo sabe que foi roubado, e portanto não é falso”.

Tradução de Paulo Migliacci

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