Descrição de chapéu Obituário Marilena Ansaldi (1934 - 2021)

Bailarina Marilena Ansaldi, morta nesta semana, foi símbolo político da dança

Artista rompeu barreiras entre o clássico e o contemporâneo e abriu espaço para as artes

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O público entra no teatro pequeno, em condições precárias, um galpão. No chão, presa por elásticos tensionados em vários pontos do palco, a bailarina já está em cena enquanto as pessoas se acomodam.

A cena, hoje comum, foi um marco na história da dança contemporânea brasileira e na obra de Marilena Ansaldi, morta, aos 86, na última terça.

O ano era 1975, o Brasil vivia a ditadura militar, a arte sofria censura e a dança, a penúria crônica de recursos e espaços —algumas coisas não mudaram muito. Nesse cenário, Ansaldi estreia em São Paulo “Isso ou Aquilo”, dança-teatro autobiográfica, com roteiro co-escrito pela própria bailarina e com direção de Iacov Hillel.

A bailarina Marilena Ansaldi faz uma coreografia sentada numa cadeira, com o braço estendido
A bailarina Marilena Ansaldi durante intervalo de ensaio para o espetáculo "Sala de Ensaio", em 2015 - Eduardo Knapp/Folhapress

Amarrada aos elásticos, a artista desatava no palco sua própria formação de bailarina e algumas fronteiras entre as linguagens do teatro e da dança, trazendo para a cena o hoje tão falado corpo político. “Isso ou Aquilo” conquistou público, prêmios e carreira internacional. Também foi apresentado na estreia do Teatro de Dança Galpão, outro marco da trajetória de Ansaldi.

Ela conseguiu que, pela primeira vez, o governo designasse um espaço totalmente voltado à dança. Foi uma vitória da classe e, logo se viu, das artes e da cultura. O local escolhido, o Teatro Ruth Escobar, na Bela Vista, foi um espaço de resistência à censura e à ditadura. E, muitas vezes, temas proibidos puderam ser apresentados na forma menos óbvia das artes do movimento.

Inaugurado extraoficialmente em 1974, o Galpão também foi o celeiro para grupos e artistas independentes experimentarem, criarem e apresentarem os movimentos de vanguarda que sacudiam a dança no mundo todo. A iniciativa de Ansaldi, ela mesma considerada precursora da dança-teatro no Brasil, deu o espaço necessário para a dança paulista e brasileira atuais se desenvolverem.

Ansaldi foi um símbolo, não só por sua atuação política, mas por sua jornada particular. Nascida em São Paulo, ela passou a infância no Rio de Janeiro e se formou no balé clássico. Foi solista do corpo de baile do Municipal de São Paulo e do Balé Bolshoi, na então União Soviética.

Sua virada do clássico para a dança contemporânea, em “Isso ou Aquilo”, foi uma das manifestações mais significativas e reconhecidas desse movimento que já se espalhava pela arte. Nesse contexto também se insere outra obra marcante, “Escuta Zé”.

Inspirado no livro “Escuta, Zé Ninguém”, de Wilhelm Reich, uma espécie de mentor espiritual da revolução sexual dos anos 1960, o espetáculo reunia crítica social com libertação do corpo e rompia de vez com as fronteiras entre dança e teatro. Como resultado, ganhou um público maior.

A experiência do teatro Galpão foi encerrada em 1981, com o fechamento definitivo do espaço. Durante a década seguinte, Ansaldi deu aulas de dança-teatro e participou de montagens como “Hamletmachine”, com direção de Marcio Aurélio, “A Paixão Segundo G. H.”, de Cibele Forjaz, e, já em 1991, “Clitemnestra”, dirigida por Antonio Araújo.

Depois, passou 12 anos longe dos palcos, para voltar em 2005 com “Desassossego”, um roteiro seu baseado na obra de Fernando Pessoa, dirigida por Marcio Aurélio. Ansaldi estava então com 70 anos e foi convencida a voltar à cena pela curadora da série “Dança em Pauta”, Ana Francisca Ponzio.

Desde então, se dedicou, sem sucesso, a encerrar a carreira, como afirmou em 2008 ao criar uma performance para um documentário da São Paulo Companhia de Dança.

Em 2012, com uma infecção no pulmão, achou que ia morrer. Longe do palco, doente e sem dinheiro, também simbolizou um aspecto, dessa vez sombrio, da vida do artista brasileiro. Diz ter sido salva por um milagre. Os santos foram o diretor José Possi Neto, com quem realizou diversos trabalhos, e a bailarina Vera Lafer, da companhia Studio 3.

Os dois providenciaram a internação de Ansaldi e a convidaram para uma nova produção da companhia. Em 2014 ela volta ao palco interpretando Maria Callas –um espetáculo na medida para uma diva nacional filha de um barítono e uma corista.

Ansaldi continuou dançando em espetáculos da Studio 3. Já octagenária, suas participações, mesmo que pontuais, geralmente solos breves e poderosos, eram ovacionadas pelo público. Sua última
performance foi em 2019, com “Depois de Tudo”, dirigida por William Pereira e coreografada por Anselmo Zola. Ansaldi morreu por complicações pulmonares e falência de órgãos, em São Paulo.

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