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Lúcio Cardoso levantou um punhal contra Minas Gerais em obra-prima

'Crônica da Casa Assassinada', que ganha reedição, é uma comédia humana de Balzac desnorteada por diários íntimos

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Silviano Santiago

Crítico literário vencedor do prêmio Camões, é autor de "Uma Literatura nos Trópicos" e do romance "Machado", que ganhou o prêmio Jabuti de livro do ano

Publicado em 1898, “Pelo Sertão”, de Afonso Arinos, é um pequeno livro de contos salutar e deprimente. Nele se estabelecem e se definem dois dos principais símbolos que expressam a soberania e a decadência da vida nas Gerais, no campo e em cidade interiorana.

Lembro o altivo buriti, cujo tronco, se deitado, vira o caudaloso e fértil rio São Francisco, e a decrépita cadeirinha, uma liteira transportada por escravizados de libré nos áureos tempos coloniais.

Os contos “Buriti Perdido” e “A Cadeirinha” são, respectivamente, leitura prévia de duas obras-primas da literatura mineira, escritas em tempos de JK. Em “Grande Sertão: Veredas”, de 1956, o buriti é corpo e alma dos falocêntricos coronéis, fazendeiros e jagunços. Em “Crônica da Casa Assassinada”, de 1959 e autoria de Lúcio Cardoso, a feminina e excêntrica cadeirinha é um escárnio à derrocada civilizacional das Gerais.

Como nos encaminhamos para Cardoso, lembremos a magnífica e assombrosa passagem em que o homossexual Timóteo, gordo e suado, sempre a trajar um vestido de franjas e lantejoulas que pertencera à mãe, chega ao velório de Nina deitado numa rede sustentada por três negros de peito nu, ex-escravizados.

lucio cardoso grisalho e de camisa, em foto preto e branco
O escritor Lúcio Cardoso - Reprodução

No conto de Arinos, depois de transportar mulheres e jovens nobres por Ouro Preto, a cadeirinha é carro fúnebre que leva os cadáveres de anjinhos pobres ao cemitério, ou ambulância primitiva a conduzir militares feridos ao hospital.

Recordemos, ainda, o final da cena dramática. “De pé, parado diante daquela gente, Timóteo era como a própria caricatura do mundo [dos barões e baronesas] que representavam.” Lembremos, finalmente, o depoimento de Lúcio Cardoso ao crítico Fausto Cunha. “O punhal [assassino] que eu levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais”, disse o autor.

Há que saudar com entusiasmo os cineastas Carlos Alberto Prates e Paulo César Saraceni. Nas respectivas adaptações ao cinema de Guimarães Rosa e de Cardoso, escolhem o expressivo ator Carlos Kroeber para interpretar as diferentes e mesma face das Gerais.

carlos kroeber
O ator Carlos Kroeber no filme "Noites do Sertão" - Divulgação

No filme “Noites do Sertão”, baseado no conto “Buriti”, Carlão representa um fazendeiro rico e machista, Iô Liodoro. E Kroeber se esbalda no papel de Timóteo, a contracenar com Norma Bengell. O buriti e a cadeirinha estão no detalhe, como o Diabo no redemoinho.

Afonso Arinos foi monarquista confesso e intérprete às avessas do Canudos de Euclides da Cunha. Nas Minas Gerais, o progresso é sinônimo de decadência. O progresso, escreve ele, “marcha para a dispersão, a desagregação e o formigamento, um grande organismo tomba e se decompõe e vai formar uma inumerável quantidade de seres ávidos de vida”. E cabe ao narrador de “A Cadeirinha” vaticinar o fim dela –“desaparece agora, vai ao fogo e pede que te reduza a cinzas!”.

carlos kroeber sem camisa
O ator Carlos Kroeber no filme "A Casa Assassinada", baseado em Lúcio Cardoso - Divulgação

Lúcio Cardoso é o romancista da história em marcha-a-ré e progressista. Será endossado por sociólogos de prestígio, como o paulista Sérgio Miceli, em controverso capítulo do livro “Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil”, de 1979. Ou cineastas do porte do pernambucano Kleber Mendonça Filho, no filme “O Som ao Redor”, de 2012. Como exemplo, cito a visita ao cinema já aos escombros na cidade interiorana e o retorno hitchcockiano do tema da vingança.

Temática e formalmente, a atitude de Cardoso diante do gênero romance não é diferente do pensamento que “Pelo Sertão” exprime.

No Ocidente, o romance se dispersa, se desagrega e formiga na década de 1950. Autran Dourado e Osman Lins são bons exemplos. A multiplicidade de relatos narrativos diferentes é a riqueza e a atualidade da “Crônica da Casa Assassinada”. O romance é composto como se um dos volumes da comédia humana, de Honoré de Balzac, desorientado por romance epistolar e desnorteado por diários íntimos e testemunhos.

No entanto, o romance em fragmentos de Lúcio arrasta consigo um grave problema. O escritor não se dá conta de que tem, nos anos 1950, de inventar para cada narrador e personagem diferente e disperso sua dicção singular, o ponto de vista dela ou dele. Assim se escrevem os “sons da fúria”, para trazer à baila a singularidade de Faulkner.

A pluralidade e a variedade dos narradores e personagens —algo que embasbacou os leitores de Faulkner e os espectadores do filme “Rashomon”, de Akira Kurosawa— se cansa na monotonia duma voz narrativa única por todo o romance.

A questão se explica. Oriundo da década de 1930 e sintonizado com o relato subjetivo e intimista (“récit”) de André Gide, François Mauriac e Julien Green, Cardoso não é sensível à lição pelo “não” de Graciliano Ramos, em "Vidas Secas". Quem sou eu —deve ter perguntado mestre Graça— para dar fala a retirante nordestino? Que permaneça mudo. Que só fale, no romance, um único narrador letrado.

A Lúcio Cardoso sobra as qualidades de romancista oitocentista, falta as artimanhas de mímico pós-moderno.

Crônica da Casa Assassinada

  • Preço R$ 84,90 (560 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Lúcio Cardoso
  • Editora Companhia das Letras
Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto citou o cineasta Paulo César Saraceni​ como Carlos César Saraceni. O texto foi corrigido.
 

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