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'Os Sertões' fascina pelo drama dos fiéis de Antônio Conselheiro, disse Bosi

Leia entrevista de um dos maiores críticos literários do Brasil, morto nesta quarta (7), à Folha

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São Paulo

Alfredo Bosi, morto de Covid-19, nesta quarta-feira (7), aos 84 anos, era professor emérito da Universidade de São Paulo, membro da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores críticos literários do país.

Em entrevista à Folha, em 2002, Bosi falou sobre o impacto de Euclides da Cunha, Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido na literatura brasileira, o clássico "Os Sertões", as diferenças entre militância política e arte, globalização e mundo contemporâneo.

"O que resiste até hoje, e faz de 'Os Sertões' um livro fascinante, é a expressão do drama vivido pelos fiéis de Antônio Conselheiro, em Canudos", afirmou o crítico.

Para ele, as razões pela quais a obra continua colossal —mesmo após mais de um século de sua publicação— estão além do que a marcou na época de lançamento—"o determinismo do meio e da raça e da linguagem árdua".

Bosi defendia ainda que "Os Sertões" faz do passado uma realidade, em partes, contemporânea.

Leia a seguir a entrevista, a Sylvia Colombo, na íntegra.

O senhor diz 'a literatura, com ser ficção, resiste à mentira, é nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente'. A resistência que a literatura oferece se cumpre especificamente dentro do espaço da literatura? Gramsci, que era um pensador revolucionário, reconhecia, porém, a diferença que, em geral, separa a militância política e a arte.

A política de esquerda é uma ação organizada para mudar a realidade, o que é, aliás, um ponto capital do marxismo. O artista, mesmo quando o seu credo é radical, usa do seu talento para representar o real, interpretá-lo e exprimi-lo à luz das suas intuições e dos seus sentimentos.

Assim, o artista pode estimular no leitor o desejo de mudar as coisas, o que é um efeito político da arte. Mas isso não é responsável pelo valor expressivo e estético da obra. Um grande romancista, como Balzac e Dostoiévski, pode ter uma ideologia conservadora e suscitar atitudes de revolta no leitor revolucionário.

No artigo 'Canudos Não se Rendeu', o senhor chama a atenção para a necessidade de modernizarmos nossa leitura de 'Os Sertões'. Deveríamos levar em conta seus 'estratos superiores e mais resistentes' em detrimento de características que o tornam uma obra datada, seu 'determinismo estreito' e a 'linguagem rebuscada'. O que viria à tona com a nova leitura que o senhor propõe? "Os Sertões" já tem um século de vida. A sua presença na cultura brasileira deve-se a razões que superam as duas características que marcaram a obra quando apareceu: o determinismo do meio e da raça e a linguagem árdua, hiperbólica.

O que resiste até hoje, e faz de "Os Sertões" um livro fascinante, é a expressão do drama vivido pelos fiéis de Antônio Conselheiro, em Canudos.

A desproporção entre as forças do Exército e os recursos dos sertanejos representa o abismo que havia entre o Brasil formal e o Brasil profundo.

Euclides, que inicialmente julgava o Conselheiro uma ameaça à jovem República, um "foco monarquista" perigoso, acabou se convencendo de que se tratava de um movimento de gente pobre e abandonada. E a reportagem que ele fez, "in loco", virou a denúncia de um crime. Essa é a atualidade viva de "Os Sertões", tornar o passado uma realidade de certa forma contemporânea do historiador, como propunham, com filosofias diferentes, Croce e Benjamin.

No mesmo artigo, o senhor diz que a compreensão do messianismo do Conselheiro foi uma 'conquista no roteiro intelectual de Euclides'. Em que medida o senhor acredita que o autor de 'Os Sertões' se diferenciava do padrão dos intelectuais de sua época? Euclides formou-se na segunda metade do século 19, época áurea do determinismo racial e do evolucionismo linear. Os seus mestres europeus e brasileiros —como o médico-antropólogo Nina Rodrigues— o consideravam um branco europeu organicamente superior a todos os povos colonizados.

O fenômeno do messianismo entrava, sem mais, na categoria do atraso. Euclides não conheceu nenhuma outra explicação científica para entender o messianismo. Mas, levado por uma intuição ética, ele conseguiu, ao menos, sentir a contradição social e cultural que gerava o comportamento dos sertanejos.

Foi um passo adiante que ele deu, por si mesmo, o que o diferencia de muitos intelectuais do seu tempo, que viam o Brasil só a partir da rua do Ouvidor e dos brilharecos da Belle Époque. É preciso lembrar que os grandes estudos sobre o messianismo no Brasil só apareceriam nos anos 1960 com as pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Douglas Teixeira Monteiro, entre outros.

Em outro texto, o senhor diz que 'o ímpeto nacional-romântico resistiu e sobreviveu conforme as condições políticas locais e pôde resistir até o nosso tempo, reavivando-se sempre que o conflito das ex-colônias com o imperialismo precise de um cimento ideológico e de um imaginário que o alimente'. Acha que, num mundo globalizado, o 'nacional-romântico' pode se reavivar como forma de resistência? A expressão "ímpeto nacional-romântico" é adotada no livro em sentido histórico preciso. A cultura que se gestou durante o processo de nossa independência —e se exprimiu ao longo do século 19— foi, ao mesmo tempo nacional, por oposição ao passado colonial português, e romântica, na medida em que todo o Ocidente vivia os desdobramentos da Revolução Francesa com as conquistas do indivíduo que a ascensão burguesa propiciava.

Essa matriz tem uma força simbólica resistente. Quanto mais o imperialismo aperta o cerco às nações emersas do velho colonialismo —na América Latina, na África e em algumas zonas do mundo árabe—, mais a cultura nacionalista se vê alimentada e ganha conotações românticas e utópicas.

É claro que o termo "romântico" passou a ser metáfora empregada por oposição ao conformismo dos sequazes da pura globalização, que se presumem os únicos "realistas" do novo milênio.

Qual o legado de Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido para a crítica literária que se faz hoje? Procurei resumir as contribuições desses dois grandes mestres insistindo principalmente na liberdade de espírito com que Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido se valem dos vários métodos críticos disponíveis —culturalismo, marxismo, psicanálise, fenomenologia, estilística— para detectar a riqueza contraditória das grandes obras literárias.

Em ambos, a tensão entre indivíduo e sociedade, criação e representação, se faz dialeticamente. Com isso, as limitações do sociologismo e do formalismo são superadas, o que é um tanto admirável.

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