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Saber se biógrafo de Philip Roth estuprou alguém muda a leitura

Denúncias de abuso sexual contra Blake Bailey, autor de livro agora cancelado, podem respingar no legado do biografado

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“Estou indecisa se devo ou não ler o livro. Eu amo Roth. Mas não sei se posso confiar no olhar de Bailey. Estou esperando por este livro há alguns anos. Eu comprei, e ele está esperando por mim na livraria. Será que devolvo?”

O tuíte em resposta à escritora americana Mary Karr expressa o dilema que emergiu com as denúncias de abuso sexual feitas contra Blake Bailey, de 57 anos, autor do aguardado “Philip Roth: The Biography”.

O escritor Blake Bailey, que é amplamente conhecido por suas biografias literárias de Richard Yates, John Cheever, Charles Jackson e Philip Roth. Ele é o editor das edições omnibus da Biblioteca da América das histórias e romances de Cheever - New York Times

Mary Karr, amiga de Roth, havia debatido com Bailey sobre a biografia na véspera do escândalo vir à tona, na semana passada. “Eu apoio qualquer jovem corajosa que queira falar”, escreveu na rede social a autora do celebrado “The Liars’ Club”, o clube dos mentirosos.

Bailey negou as acusações, que chamou de “falsas e dolorosas”. Mas o efeito das denúncias foi rápido e em cascata.

Primeiro, a agência literária de Bailey, The Story Factory, cancelou o contrato com o autor. Dias depois, a editora W. W. Norton informou que cessaria a promoção do livro, cancelando eventos e envio de exemplares. No Brasil, a Companhia das Letras, detentora dos direitos de publicação do livro, informou que a tradução da obra fora suspensa.

No Reino Unido, a editora Vintage, parte da Penguin Random House, informou que segue distribuindo a biografia enquanto acompanha "o que são, por ora, alegações".

A crítica formalista diria que obra e autor são coisas distintas e que não devem ser confundidas. A crítica sociológica e feminista apontaria para as relações entre vida e obra, sejam elas evidências ou interpretações.

Ter acesso ao livro é imprescindível nos dois casos. Segundo a primeira leitura, a dúvida do tuíte que abre este texto não faz sentido –obra e autor não se misturam. De acordo com a segunda leitura, essa questão é essencial, pois pode dar pistas sobre as escolhas do autor e, portanto, sobre eventuais vieses da obra.

Quando promoveu, imprimiu e colocou nas prateleiras de livrarias físicas e virtuais as 50 mil cópias da primeira edição americana do livro, a W. W. Norton já sabia que ao menos uma denúncia de abuso sexual rondava Bailey.

Era 2018, ano da morte de Roth, aos 85 anos. Era também o ano em que explodiram denúncias femininas de violência sexual na esteira do movimento MeToo. Elas foram inspiração confessa para que Valentina Rice, uma executiva do mercado editorial americano, escrevesse um email para a presidente da Norton, Julia Reidhead, relatando, sob pseudônimo, ter sido alvo de sexo não consensual praticado por Bailey em 2015.

De acordo com reportagem do New York Times, Rice e Bailey teriam se conhecido na noite do crime, durante um jantar na casa do crítico literário Dwight Garner, onde a executiva planejou pernoitar. Bailey acabou ficando pra dormir na casa de Garner, e, segundo Rice, invadiu seu quarto e investiu contra ela, mesmo depois de ouvir “não” e “pare”.

“Eu entendo que você precisará confirmar essa alegação, o que eu estou preparada para fazer se você puder assegurar o meu anonimato, ainda que seja provável que o senhor Bailey saiba exatamente quem eu sou”, escreveu Rice à Norton, de acordo com o jornal americano.

O email nunca foi respondido. Mas, uma semana depois, Rice recebeu uma mensagem do próprio Bailey. Ele dizia ter tido acesso à mensagem de Rice por meio de seu editor e se defendia da acusação. Um porta-voz da Norton informou que a alegação da mensagem anônima de Rice “foi levada muito a sério”. Se nem resposta obteve, fica difícil sustentar essa versão.

Fato é que a biografia autorizada de um dos maiores escritores contemporâneos, em que Bailey trabalhou por anos, com acesso aos arquivos do próprio Roth, era um investimento de retorno garantido. E o livro seguiu seu curso até emergir agora como um dos maiores eventos literários do ano para o mercado editorial dos Estados Unidos.

Com uma agenda de lançamentos e debates já amarrada, o livro começava a galgar posições nas listas de mais vendidos, num movimento de consagração de Bailey –o que pode ter sido o gatilho para que denúncias contra ele viessem a público.

A segunda a denunciar Bailey publicamente foi sua ex-aluna Eve Peyton. Bailey foi seu professor do ensino médio em Nova Orleans. Ela afirma que o autor a estuprou em 2003, quando ela já era uma estudante de pós-graduação.

Outras ex-alunas do biógrafo afirmaram que ele praticava “grooming” com seus estudantes, ou seja, que ele se comportava de modo insinuante, como se as preparasse para encontros sexuais futuros, relatados por outras duas ex-alunas de Bailey.

Se Bailey é culpado ou inocente, só uma investigação pode apontar para que a Justiça confirme ou não os crimes. Os cancelamentos no mercado editorial americano, portanto, ou se baseiam em informações que ainda não vieram à tona ou parecem precipitadas, talvez na tentativa de poupar a própria imagem ou a do autor objeto da biografia.

Os debates que emergiram com as denúncias e com passagens da biografia autorizada feita por Bailey podem acabar espirrando no próprio legado de Roth.

Representações femininas de romances do autor já foram criticadas e atribuídas a uma visão machista —talvez reflexo da própria geração de Roth— mas também foram apontadas como potencialmente misóginas. Sâo leituras que partem tanto de passagens dos romances de Roth quando da biografia de Bailey —e daquilo que teria ficado de fora dela.

Conhecer quem escreveu uma obra faz diferença na sua leitura e pode ajudar a decifrar escolhas do autor. Mais do que confiar ou não na abordagem que Bailey fez da vida de Roth, saber que tipo de tratamento ele dispensou a algumas mulheres faz diferença não só na decisão sobre ler ou não seus livros mas, principalmente, na maneira como fazer essa leitura.

Ao tuíte em questão, Mary Karr respondeu “leia aquilo que você quiser". "Esse é sempre o meu conselho." Para quem não fez uma encomenda antecipada do livro nos Estados Unidos, no entanto, essa não deve ser uma escolha possível.

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