Descrição de chapéu
Jairo Malta

Ser nerd na quebrada me ensinou que a vida real é como Gotham City

Imaginar que estamos em outro mundo talvez seja mais consolador do que ver que a realidade não é a vila dos hobbits

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jairo Malta

Designer, fotógrafo e repórter na Folha de S.Paulo. É autor do blog Sons da Perifa.

Onde você estava em 11 de setembro de 2001? Se você for um jovem no auge dos seus 30 e poucos anos, talvez estivesse em frente à TV, assistindo ao Goku atingir o terceiro nível de Super Sayajin em “Dragon Ball Z”. Aquele foi o momento do jovem nerd da quebrada.

jovem negro empina a bicicleta enquanto anda por ruas de cidade no pôr-do-sol
Cena do videogame 'Grand Theft Auto: San Andreas', de 2004 - IMDb/Divulgação

Ser um nerd pobre nos anos 2000 não era uma tarefa fácil. Vindo de família evangélica então, quase impossível. A maioria dos desenhos era pagã para o meu pai. “Cavaleiros dos Zodíaco”? “Esse negócio de signos é do demônio.” E quando ele descobriu que um dos personagens do “Dragon Ball” se chamava Mr. Satan, senhor Satã? Já sabe, né.

Mas a gente corria pelas beiradas. Assistíamos escondido ao animê “Yu Yu Hakusho” na finada TV Manchete e, quando o Yusuke conseguiu ver a Genkai pelada com um de seus poderes, fizemos nossa iniciação no mundo dos hentais, animês e mangás pornôs.

Mas não só de “Pokémon” e de tazos dos “Looney Tunes” vivia o jovem de quebrada. Dois mil e três. Eu, André, Luiz, Preto, Robinho e Andrézinho varávamos a noite jogando “Gran Turismo” em um Playstation. Para quem não sabe, é um jogo de corrida em que você precisa tirar uma carteira de motorista virtual para poder correr com o seu Audi TT em Laguna Seca.

Ter um Playstation na quebrada era incomum em 2003. Mesmo quando o modelo era de 1994, só tinha um controle funcionando e imagem preto e branca, e tinha sido doado pela patroa da mãe do Luiz Henrique, porque o filho dela tinha comprado um novo.

"Winning Eleven" foi um dos jogos mais jogados no Jardim Progresso, extremo sul de São Paulo, em 2005. A gente fazia a liga com prêmios, uma Coca-Cola família três litros, e castigos que se resumiam a dar um "salve” em quem ficasse nas últimas colocações. Cada um tinha o seu time, o meu era o Manchester United. Lembro quando o goleiro Van der Sar saiu do Fulham e foi para o meu time. Dias de glória, parceiro.

Em 2007, ganhei dos meus pais um Playstation 2. Foi o melhor momento da minha vida. Perdeu só para o dia em que o Goku atingiu o nível quatro do Super Sayajin. Agora tínhamos um videogame colorido, caro, no qual eu passava a noite e as madrugadas jogando “Black”, o melhor jogo de tiro da Electronic Arts.

“GTA: San Andreas” foi o ápice. Andar pelas ruas de Los Santos com CJ, gastar 20 minutos em uma missão do jogo e cinco horas fazendo códigos para ficar rico, matar policiais sem consequências e ressuscitar no dia seguinte eram o desejo de qualquer jovem negro de quebrada nascido no início dos anos 1990 que fazia corujão.

Pausa a cena aqui —você, jovem gamer de 18 anos, nunca vai saber o que é fazer um corujão na lan house sexta-feira jogando “Counter Strike” e gritando “subiu!” só para irritar o colega do lado.

Mas a vida real é bem diferente de jogar “GTA”. Eu, aos 15 anos e muita espinha na cara, depois de uma noite jogando “Fifa”, ligo para o meu pai, que era taxista, para me buscar na casa do Luiz Henrique. Estava com o meu videogame e não queria voltar de busão.

As cenas seguintes duram cerca de 20 minutos: meu pai chega, entro do lado do passageiro com o Playstation 2 no colo. Ele segue, vira à esquerda, e um carro da polícia fecha bruscamente a gente.

Os policiais tiram meu pai do carro, e ali percebi o que estava acontecendo. Os dois policiais com as armas mirando na minha direção pedem para eu sair do carro. Eu, criança, não sabia o que fazer. Um deles vem e me tira à força. Meu lindo PS2 cai no chão e quebra. Fico algemado enquanto meu pai explica que eu não estava sequestrando ele.

Para o jovem nerd de quebrada, imaginar que estamos no mundo invertido talvez seja mais consolador que entender que o mundo real não é a vila dos hobbits e sim Gotham City, onde quem tem mais dinheiro se fantasia de herói para bater em pobre e, quanto mais diferente você for, mais estrelinhas alertando que a polícia está atrás de você acenderão no “GTA”.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.