CPI da Covid atrai público que ficou órfão do BBB e decola na era da 'política pop'

País parou para saber quem é o responsável pelo cenário da pandemia como num crime que se desvenda

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São Paulo

Numa espécie de tribunal cheio de câmeras, o inquisidor dirige sua pergunta à testemunha. Em vez de dar uma resposta concreta, ela divaga sobre o assunto grave que se apura e se esquiva do questionamento central. O inquisidor se enfurece e repete a indagação. De novo sem uma resposta objetiva, ele ameaça pedir a prisão do homem, numa cena vista por milhões de espectadores.

O episódio até caberia no roteiro de um filme de Aaron Sorkin, como “Os 7 de Chicago”, mas se trata de um dos memoráveis momentos do mais recente novelão brasileiro, a CPI da Covid. No caso, a situação descrita foi protagonizada pelo senador Renan Calheiros e por Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação da Presidência da República.

Ilustração mostra como fundo a casa do Big Brother Brasil 2021. Em frente, Renan Calheiros discute com Flávio Bolsonaro, Eduardo Girão tenta apaziguar a briga. Todos usam traje de banho.
Ilustração de Renan Calheiros, Flávio Bolsonaro e Eduardo Girão na casa do Big Brother Brasil 2021 - Carolina Daffara/Folhapress

Não faltam aproximações dramatúrgicas entre o que se tem visto no Senado no último mês e as grandes atrações do entretenimento brasileiro —toda a movimentação nas redes sociais, que têm gerado conteúdo usado pelos próprios senadores ao vivo, é um evento inédito para uma comissão parlamentar de inquérito.

"Alguns outros episódios tiveram um maior volume de interação na internet, como o impeachment e as eleições de 2018, por exemplo. Mas, no universo do parlamento, ela pode ser, sim, um dos eventos que mais criaram engajamento", afirma Pedro Barciela, cientista de dados que tem acompanhado as redes durante a CPI e é autor do blog Essa Tal Rede Social.

Renan Calheiros, por exemplo, chegou a abrir uma caixa de perguntas para saber o que os seguidores queriam que fosse questionado aos depoentes. Os depoimentos, inclusive, têm sido transmitidos em diversos canais do site de streaming Twitch, com direito a narrações calorosas nos momentos mais emocionantes. Até Marcelo Adnet entrou na roda e passou a narrar trechos da CPI como se fosse Galvão Bueno.

Cenas dignas de novela têm sido comumente comparadas às reviravoltas do Big Brother Brasil, que terminou pouco antes de a CPI começar. Nas timelines do Twitter, a sensação que fica é quase a de uma passagem de bastão da opinião pública do reality para os parlamentares.

“Vivemos na era da política pop.” É como Felipe Nunes, cientista político e diretor da Quaest, empresa que faz consultoria em redes sociais, sintetiza o momento. O termo, segundo ele, está ligado ao fato de as pessoas consumirem política não só ao buscarem conteúdos objetivos, ou seja, para entenderem o factual.

Esse paralelo do BBB com a CPI é perfeito nesse sentido porque as pessoas, hoje, consomem política não apenas por conteúdos objetivos, ou seja, para entender a posição de cada um. As pessoas têm cada vez mais consumido conteúdo de política como entretenimento, para ver as brigas, as lacradas, os rachas

Felipe Nunes

cientista político e diretor da Quaest

Se a CPI pode ser comparada ao maior reality show do país, então é possível traçar paralelos entre os políticos e os brothers? “Tem alguns traços que marcam essa política pop e que estavam presentes tanto no BBB quanto estão presentes na política real”, diz Nunes.

A aproximação é até quantitativa. Como mostrou reportagem deste jornal, baseada num levantamento da Quaest, o senador Marcos Rogério, do DEM de Rondônia, que assumiu postura de defesa do governo na CPI, estaria hoje num lugar equivalente ao da vencedora da edição mais recente do BBB, Juliette Freire, no ranking de popularidade digital na CPI da Covid, que avalia uma série de dimensões dos perfis, como engajamento, que são os comentários e curtidas por postagem, e número de seguidores.

As características de Juliette apontadas pelo especialista foram a sua autenticidade, a capacidade de não fugir das polêmicas e também de não ficar em cima do muro em nenhum momento.

Nunes avalia que essa tem sido a mesma estratégia dos políticos que vêm ganhando mais popularidade na CPI, caso também dos senadores Renan Calheiros, do MDB de Alagoas, e Randolfe Rodrigues, do Sustentabilidade do Amapá. “Eles estão sempre metidos em polêmica, comprando briga e polemizando com alguém”, acrescenta.

Mas nem tudo é óbvio ou segue as regras de reality, é claro. O cientista político afirma que havia uma expectativa de que o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, saísse de seu depoimento como uma espécie de Karol Conká, por exemplo, defenestrada do BBB como a vilã da edição. No arsenal de críticas que o ex-ministro recebeu, Nunes avalia que ele perdeu mais do que ganhou nas redes, mas não sofreu uma queda tão acentuada na sua popularidade.

Já Fábio Wajngarten também teve uma repercussão curiosa. O ex-secretário se embaraçou durante a sua fala e acabou sendo posto numa posição que é “nem favor nem contra", na avaliação de Nunes. "Ele é quase descartado no processo do debate público, como alguém que não tem relevância.”

O fenômeno Wajngarten, segundo o cienista político, é mais ou menos parecido com o que aconteceu com o participante Bil no BBB, que entrou no programa, se envolveu rapidamente em polêmicas e acabou saindo logo nas primeiras semanas.

Todos esses personagens podem ainda entrar nesse jogo de comparação com o a última edição do Big Brother, ainda fresca na memória dos espectadores, mas as narrativas centrais da arena política são embates bem mais clássicos do que os da formação do reality.

Paulo Nassar, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, lembra a ideia de morte versus vida, ou as oposições entre mentira e verdade, justiça e injustiça, que estão atravessando todos os dias de depoimentos.

Até mesmo os nomes usados se aproximam da ficção. Além de memes divulgando o lineup da próxima semana do festival da CPI, nomes como "capitã cloroquina", dado à secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, dão o clima a essa "Netflix política", na definição de Nassar.

Mas entre esses muitos elementos quase ficcionais está uma narrativa bastante real e grave —a da morte de mais de 450 mil brasileiros e do luto por essas vidas perdidas enquanto outros países caminham para uma vacinação acelerada.

"A base é dramática, mas ela é tão trágica que vai para uma lógica de entretenimento", diz Nassar. O humor, aqui, teria a função psicológica de levar à catarse, ou seja, a um momento de purificação e de resposta ao que está acontecendo.

Há, de fato, momentos da CPI em que o entretenimento parece até sair de um roteiro.

Quem acompanhou o depoimento de Mayra Pinheiro a viu ser questionada se a Fiocruz tinha, de fato, um pênis de plástico dentro da instituição, como ela tinha dito num áudio antes de se tornar secretária.

Incrédulo, o senador Omar Aziz, do PSD do Amazonas, corrigiu o diálogo, explicando que ela teria dito "tênis", e não "pênis". A própria secretária afirmou, então, que o certo era mesmo o termo fálico, num momento um tanto constrangedor.

"As pessoas, no fundo, querem saber quem é o culpado, como num crime que está sendo desvendado", diz Felipe Nunes, da Quaest. "Esse debate tem a ver com a necessidade que a sociedade tem de descobrir como é que a gente se meteu nessa confusão. As pesquisas de opinião mostram isso, as pessoas não aguentam mais."

É algo semelhante a quando o Brasil parou para saber quem matou Odete Roitman, diz o especialista, lembrando a grande vilã da novela "Vale Tudo".

Orlando Calheiros, antropólogo que também faz transmissões pela Twitch durante a CPI da Covid, diz que entrar na lógica do espetáculo é até uma maneira de atrair um público que, normalmente, não estaria interessado numa comissão dessas.

"Vi como uma oportunidade de comentar o evento enquanto ele estivesse acontecendo, de uma forma que ele fosse palatável para um público que não está acostumado a acompanhar política", diz. "Por mais que, alguns dias, como naquele do Wajngarten, se pareçam com um roteiro e tenham reviravolta, no geral, a CPI é um saco."

Mesmo nos dias menos emocionantes, o clima de torcida permanece. O antropólogo tem publicado, por exemplo, um ranking dos senadores que estão numa escala de "Bangu" –sim, a prisão– a "shantay, you stay" –o bordão da apresentadora RuPaul que garante uma sobrevida às participantes de seu reality show de drag queens.

Entre os extremos, senadores também aparecem como "imunizadah!", "orgulho da OMS" e um menos digno "máscara de pano".

Orlando Calheiros, que fez parte da Comissão Nacional da Verdade, que aconteceu entre 2012 e 2014, já acompanhou outros eventos políticos nesse esquema de lives, mas atribui o sucesso de audiência da atual CPI ao fato de ela lidar com a pandemia, que afeta a todos de maneira direta.

Com a ideia de transmitir os depoimentos pela Twitch, ele achava que iria reunir cerca de 300 pessoas na sua janela —e viu um salto de espectadores, que chegaram a 7.000 numa live.

O antropólogo diz, inclusive, que ele próprio faz parte de um ecossistema de usuários que têm fornecido material para os senadores —ou os "internautas", como os chamou Renan Calheiros. E se engana profundamente quem acha que essa demão pop rebaixa a discussão política.

Da mesma forma que na Comissão Nacional da Verdade, um grupo foi atrás de fontes, de entender informações, achar padrões de comportamento e criar documentos históricos. Quem está produzindo esse tipo de arquivos, hoje, são arrobas, afirma Calheiros, como os perfis Tesoureiros do Jair e o JaIrme's Vaccine Race.

Orlando Calheiros pensa em criar programas que explorem até os bastidores dessa CPI e acha que essa rotina de pelo menos oito horas por dia acompanhando os desdobramentos no Senado ainda não tem hora para acabar.

Enquanto isso, o Brasil parece aguardar ansioso quais serão as próximas atrações da semana da "CPIPalooza". O que amarra todos os episódios que se acompanharam até aqui e os próximos capítulos, diz Paulo Nassar, é o protagonista que, por enquanto, está distante dos olhos do público —o próprio presidente Jair Bolsonaro.

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