A realidade paralela se instalou no Brasil com Bolsonaro, diz Muniz Sodré

Professor emérito da UFRJ analisa, em livro, 'sociedade incivil' de Gramsci e esvaziamento da democracia

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Brasília

O esvaziamento de valores que sustentam as instituições e a perda de força da democracia e da representação parlamentar puseram a sociedade civil de cabeça para baixo.

A “sociedade incivil”, subversão do conceito de Antonio Gramsci de sociedade civil, é o objeto de análise do professor emérito Muniz Sodré, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, recém-lançado pela Editora Vozes.

A cultura do algoritmo, que cria uma sociedade paralela fora da dimensão do real, é fundamental para a regressão que o pesquisador vê, abrindo espaço “para os fantasmas e os horrores que aparecem quando a sociedade civil perde força”, diz o pesquisador.

Entre eles estão o autoritarismo e o racismo, que Sodré define como “paraestrutural”, uma vez que, afirma, está ao lado das estruturas legais e não dentro delas. “Quando a sociedade incivil deixa que os valores de sustentação sejam enfraquecidos, ela abre espaço para regressões passadistas, que são o protofascismo e o racismo também”, afirma. “O racismo é um mal-estar civilizatório, que é difícil de lidar e contamina as instituições.”

O professor, que cunhou o termo “sociedade incivil” junto com a mulher, a também professora Raquel Paiva, da UFRJ, cita como exemplo a Polícia Militar do Rio de Janeiro. “Se você perceber, no Brasil a polícia ficou cada vez mais violenta, vai ficando obscena, perdendo a vergonha.”

A robotização da comunicação e as redes sociais, infestadas de robôs que atuam eleitoralmente, como foi visto na eleição presidencial de 2018, são elementos que minam as estruturas democráticas que formam a sociedade civil.

Apesar de não citar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro em seu livro, o pesquisador dá a sua eleição como um exemplo de incivilidade e de obscenidade. “A realidade paralela se instalou fortemente no Brasil com o governo Bolsonaro. A mentira, o Pinóquio se tornou uma sistemática”, afirma Sodré.

“No caso de um presidente, mesmo que haja mentiras, existe uma liturgia do cargo. Neste caso não, é obsceno, transparente. Não tem mediação nenhuma, ele odeia as mulheres, os livros, os professores, a democracia. É tudo aparente.”

No mundo incivil, a hegemonia é do algoritmo e do capitalismo financeiro, Deus vira dopamina e as discussões são baseadas em emoções e não em argumentos. O jornalismo vive uma crise paradoxal, e as relações interpessoais são mais instáveis.

Mas nem tudo está perdido, afirma ele. Se o avanço tecnológico é irreversível, assim como a automação dos postos de trabalho e da sociedade em geral, Sodré acredita que no campo da política é possível voltar para a civilidade a partir de uma reinvenção do modo de fazer política.

“Esse horizonte da substituição da vida material concreta é fruto da tecnologia, do progresso e não é irreversível. Mas a sociedade incivil em seu aspecto político, aí eu acho que tem volta. E esse retorno está na política, na recomposição da política”, afirma o autor.

Para isso, é necessário fazer uma política mais voltada ao local, que aqui não significa o município, mas sim o trabalho de convencimento de famílias, grupos e instituições em um território localizado. “Hoje a política se tornou um rito no calendário e cada vez mais os eleitores são motivados por robôs, essa política não está representando o povo como entidade política.”

Nessa sociedade incivil, a imprensa vive um paradoxo. “Quando o civilismo se retrai, o jornalismo sofre, porque precisa dessa sociedade civil para existir. Mas, no Ocidente, não existe democracia sem jornalismo.”

O professor, que é o pesquisador em comunicação mais citado na produção científica brasileira, afirma que a saída da crise da imprensa deve ser “transmidiática”. “Ela deve passar pelo papel, pela fala, pelo dígito, e evidentemente as funções jornalísticas e a forma de emprego vão se alterar”, afirma Sodré.

“Se prepara uma nova forma de jornalismo, um novo modo de ser jornalista que é mais necessário do que antes. Na ameaça da democracia, não há nada mais necessário do que jornalismo.”

A Sociedade Incivil

  • Preço R$55
  • Autoria Muniz Sodré
  • Editora Vozes
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