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Cinema

Ida de Spielberg à Netflix reforça que streaming é refúgio para cineastas

Contrato do diretor com a plataforma pode ser eixo para produção de filmes autorais e para democratizar a exibição

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O cinema é uma arte tecnológica. Podemos lutar contra o som, contra a cor, o 3D, o surround, o digital, ou o streaming. A tecnologia é que determina os caminhos do cinema –não sou eu que digo, é André Bazin, e ele sabia o que dizia.

Assim, não é estranho que Steven Spielberg chegue com sua produtora, a Amblin, a um acordo, ao que tudo indica amplo, com a Netflix.

O streaming já foi motivo de não poucos mal-entendidos, entre eles a ideia de que o cinema "se rendeu" à televisão. O mote é repetido a cada vez que um cineasta adere à Netflix ou a outra do gênero, mas não deixa de ser equivocado. A TV é só um veículo, um aparelho onde se podem projetar, entre outras coisas, filmes.

O diretor de cinema Steven Spielberg - Mark Ralston / AFP

Spielberg já se manifestou no passado contra o direito de filmes feitos para streaming concorrerem ao Oscar. O certo é que ou bem os filmes para streaming feitos em 2020 entravam para o Oscar ou não haveria a cerimônia em 2021, por falta de filmes –e mesmo assim foi um Oscar para lá de de meia-boca, vamos convir.

De todo modo a Netflix tem sido um ponto de escape para projetos pessoais de cineastas como David Lynch, Martin Scorsese e outros. Scorsese, sabemos, andou com o roteiro de "O Irlandês" debaixo do braço por mais de dez anos até topar com a Netflix. Ou seja, o streaming se tornou uma hipótese de produção a rigor bem mais acessível a projetos pessoais e eventualmente "difíceis" do que a maior parte da Hollywood tradicional.

E tradicional também poderia bem ir entre aspas –os diretores de cinema, quando falam dos executivos atuais, lamentam o fato de que os antigos Warner, Darryl Zanuck, Harry Cohn e tantos outros já não existam mais. Esses chefões de estúdio eram não raro descritos como monstruosos, mas entendiam do seu negócio, sabiam distinguir um bom plano de um mau plano etc.

Não é de estranhar, que Scorsese lamente o quanto o cinema americano encolheu nas últimas décadas, o número de bons cineastas que foram encostados –e não raro aproveitados nas séries de TV ou streaming –, o quanto se infantilizou de forma progressiva desde que os efeitos especiais passaram a ditar os rumos das grandes produções.

Abriu-se assim caminho para que esses grandes diretores, remanescentes de uma era formidável de Hollywood, servissem de cartaz para o streaming, em particular para a Netflix. Pois ela depende muito menos do gosto flutuante dos espectadores. Eles estão em casa, abrem o catálogo e escolhem o que ver –mais ou menos, quem manda em nossa escolha são, a rigor, os algoritmos; mas para isso já começam a surgir alternativas.

Discutir a teoria do streaming não vem muito ao caso. Ele não ameaça o cinema, mas a TV paga. O fato de os filmes serem projetados em aparelhos de TV ou telas de computador é secundário. Em todo caso, permite pensar em uma revanche de Thomas Edison contra os Lumière. Afinal, o seu kinetoscópio previa exibições particulares de filmes. Os Lumière é que inventaram a exibição pública.

É bem difícil prever o futuro, mas o teatro sobreviveu ao cinema, contra todas as previsões, a pintura sobreviveu à fotografia etc. Em todo caso, por causa da pandemia não só o Oscar como Cannes já se abriram ao streaming.

E, se o streaming for o caminho para que se produzam bons filmes e para que a distribuição seja mais democrática do que pode ser nos cinemas, num momento em que a quantidade de produtos audiovisuais é muito superior à capacidade das salas de os absorver, qual o problema?

Ah, sim, há um problema. A Netflix não gosta de exibir seus filmes em sala. É um capricho mercadológico a que dificilmente um Spielberg se submeterá.

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