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Janet Malcolm mostrou seu amor ao jornalismo pela via das dúvidas

Autora usou recursos da psicanálise ao fazer relatos, perfis e biografias em busca de registro do real

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Janet Malcolm era tão crítica ao ato de escrever sobre a realidade, que é de causar curiosidade o fato de ela ter sido jornalista a vida inteira, sem pensar em abandonar a profissão que ela chamava, de modo algo sensacionalista, de "uma atividade moralmente indefensável".

Isso porque um de seus grandes interesses era analisar as relações de um jornalista com sua fonte. E como as práticas de sedução do repórter para ganhar a confiança do entrevistado, a intimidade criada entre eles e, às vezes, o oportunismo de ambos os lados poderiam nublar o relato jornalístico fruto dessa estranha e complexa relação.

Se o jornalista fosse muito inocente, poderia dar toda a razão ao entrevistado, sendo enganado. Por outro lado, se fosse demasiado sagaz, poderia levar seu relato para o lado oposto do que havia insinuado durante a apuração, e o mostrar como um monstro, alguém deplorável.

A escritora e jornalista Janet Malcolm, autora de 'O Jornalista e o Assassino' - Nina Subin/Divulgação

Onde ficaria a verdade no meio disso? Malcolm, que morreu nesta quinta, aos 86, vítima de um câncer de pulmão, parecia ter demasiada simpatia ou compaixão pelas "vítimas" dos relatos, as acusadas ou difamadas pelos jornalistas. Assim, tomava uma decisão aberta ao debate. Deve o jornalista tomar um lado?

Ela também zombava das expressões que usamos em nosso desespero pela busca de uma informação, a de que jornalistas estariam sempre lutando pela "liberdade de expressão" ou pelo "direito do público de saber". Em muitos casos lutavam por vaidade ou por preservar certo status.

Sua obra mais famosa, e que deveria ser leitura obrigatória de todo iniciante, é "O Jornalista e o Assassino", reeditado no Brasil há dez anos. Publicada na New Yorker em 1989, a obra investiga a relação entre um autor de best-seller, Joe McGinniss, com Jeffrey MacDonald, um médico condenado por ter matado sua família.

Durante a investigação, o jornalista convenceu o assassino de que estava certo de sua inocência, e que o livro provaria isso. Com esse discurso, MacDonald abriu a ele as portas de sua intimidade. Só que a obra escrita depois por McGinnis o apresentou como um assassino cruel.

Qual o limite da ética jornalística neste caso? Esta é a reflexão principal do texto de Malcolm. Ainda que se refira a investigações jornalísticas mais longas, a pergunta se aplica, em menor escala, ao jornalismo cotidiano.

Até que ponto temos de mostrar simpatia e empatia pelo entrevistado e pela história que vai nos contar? Ou, ao contrário, até que ponto está permitido expressar nossa rejeição sobre o que pensa e defende? Ser sinceros pode nos fechar portas à sonhada "realidade objetiva", quimera jornalística quiçá, mas que deve ser a meta de cada investigação.

Ao situar este livro em sua obra como um todo, surge uma certa coerência de interesses. Como jornalista, Malcolm põe o foco na maneira em que a história é contada, usando instrumentos da psicanálise para analisar como cada personagem a relata.

Ao ler seus textos, a conclusão é que uma verdade não pode ser descrita como tal, mas que uma boa versão da verdade se aproximaria dela. Quais os meios aceitáveis para isso? Essa é a questão.

Malcolm também se debruçou sobre o modo como biografias foram construídas e como versões da realidade figuram em tribunais e, depois, sobre o relato de tais sessões. Não só de ética na escrita é feita sua obra. É preciso ressaltar a maestria com a qual escrevia e o modo artesanal como costurava relatos, eruditos e cheios de referências.

Seu olhar perdia pouca coisa, tanto que, em Nova York, era comum que se repetisse o conselho uma vez dado pelo crítico Robert S. Boynton –"nunca coma diante de Janet Malcolm, nem mostre a ela seu apartamento ou corte tomates enquanto ela olha". Tal era o terror de seus perfilados sobre o modo como ela não deixaria passar nada ou deixar de apontar algum detalhe embaraçoso num texto.

A crítica de Malcolm a biografias não era menos cruel. Dizia serem "assaltantes, que entram numa casa, reviram armários e gavetas que acreditam conter a verdade sobre aquela pessoa, e saem dali triunfantes com o resultado".

A partir daí, outro ponto da profissão que ela questionava, era se o jornalista deveria ou não ter um ponto de vista. Malcolm baseou nisso seus ensaios, livros e artigos.

Ficou rotulada como autora de "jornalismo literário", ao lado de Tom Wolfe ou Gay Talese. Mas, assim como eles, deve ser vista com uma lente própria. Se têm em comum o fato de usar elementos da ficção para escrever não ficção, eles diferem quanto a interesses, intenções e temas.

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