Descrição de chapéu

'Veneza' seria melhor com menos novela e mais melodrama

Longa dirigido por Miguel Falabella talvez indique que o brasileiro, que ia ao cinema para rir, agora está disposto a chorar

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Veneza

  • Quando Estreia nesta quinta (17)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Dira Paes, Danielle Winits, Eduardo Moscovis
  • Produção Brasil, 2021
  • Direção Miguel Falabella

Não faltam boas ideias a “Veneza”. Talvez a primeira delas seja transpor “As Três Irmãs”, de Tchecov, para um bordel interiorano. Ali, a velha Gringa, a espanhola Carmen Maura, já cega e um tanto demente, alimenta o sonho de ir a Veneza para encontrar o único homem a quem amou e a quem não pôde seguir —para Veneza, justamente.

A primeira ideia que surge bem clara na tela é a da prostituição como representação do ato amoroso. Portanto, de uma teatralidade do gestual amoroso recompensada pelo dinheiro. Isso fica mais claro porque é num bordel que as coisas se passam ou, como se dizia em outros tempos, numa “casa de tolerância”.

Pode-se entender a palavra em mais de um sentido, não apenas o de um lugar que a sociedade tolera. A prostituição envolve certa arte da convivência —há que se suportar, para começo de conversa, o outro, seja ele quem for, no seu corpo.

Com isso, convive a tentação de retratar a prostituta como uma alma necessariamente boa, o que é o aspecto mais tradicionalista, digamos, deste melodrama. Em todo caso, isso leva o filme a outra paragem: a possibilidade de sonhar, de fabular, que não é subtraída, aqui, da vida das mulheres ditas da vida.

O filme se abre com um primeiro plano fechado no rosto da Gringa, no auge de um melô à moda hispânica: “eu já estou morta”, ela berra, os olhos esbugalhados. Esse começo hiperbólico não é lá muito feliz, diga-se, mas serve, em todo caso, para sintetizar a ideia de uma vida de terror.

Um pouco dessa vida de horror da Gringa conheceremos por flashbacks. Regredimos ao momento em que ela, jovem, apaixona-se por um jovem italiano e vice-versa, mas ela se impede de sonhar com uma vida em Veneza.

Sua vida pregressa, mais os problemas por que passam as garotas, introduzem outro tema do filme: o amor pode existir como realidade ou permanece sempre como ilusão, como algo a que aspiramos?

De todo modo, aqui se verifica um choque entre as ideias excessivas que conduzem o filme e o naturalismo de certas interpretações. É quando “Veneza” esquece o voo poético dos melodramas mexicanos, impresso inclusive na cenografia barroca, para assumir a aparência de novela brasileira.

Isso é conjurado a partir do momento em que o pessoal do bordel —do qual faz parte também um homem, filho de uma prostituta, vivido por Eduardo Moscovis— assiste a um espetáculo circense. Ali, somos confrontados com a imagem bem onírica de um circo interiorano e em seguida com a peça melodramática representada pelos atores circenses, em que se coloca justamente a questão da virtude e do vício e, secundariamente, o da justiça e da injustiça.

A partir daí, o filme assume inteiramente a melhor tradição argentina (a base é uma peça de Jorge Accame), ou seja, em que o fantástico intervém fartamente. Nem por isso “Veneza” abandona o que tem de russo, hispânico ou brasileiro. E tudo existe para chegar a esse ponto, em que o centro é um lugar inatingível, mas cujo fundamento é uma onírica viagem a Veneza –é o ponto alto do melô, tanto em termos dramatúrgicos como de realização.

Talvez não seja ironia, no mais, este filme marcar uma passagem do cinema brasileiro de massa ao melodrama: o público que ia ao cinema para rir agora talvez já esteja mais disposto a chorar. Aquele que aspirava viajar, para a Disney agora deve se contentar em ficar nos limites de sua casa ou, se tanto, de seus sonhos. Como a Moscou de “As Três Irmãs”, os canais hoje nem tão mágicos de Veneza, também: atualmente, mais vale imaginá-los enquanto se navega nas águas fétidas do rio Tietê.

É justamente quando invade com força o território do onirismo e, novamente, do teatro que “Veneza” se revela, afinal, cruelmente realista. Um pouco menos de TV Globo e um tanto mais de Douglas Sirk ou Fassbinder fariam do filme de Miguel Falabella e Hsu Chien Hsin um trabalho a não esquecer facilmente, mas como ficou está longe de ser desprezível.

Erramos: o texto foi alterado

O ator Eduardo Moscovis tinha sido identificado erroneamente como Eduardo Tornaghi. A informação foi corrigida.

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