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Alison Bechdel e as suas 'Perigosas Sapatas' fincaram vida lésbica na cultura pop

Publicadas por 25 anos, tirinhas que ajudaram a abrir caminho para quadrinhos mais diversos saem em coletânea no país

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desenho de mulheres se beijando

Ilustração de Alison Bechdel que está na coletânea 'Perigosas Sapatas', da Todavia Divulgação

São Paulo

De 1983 a 2008, Alison Bechdel publicou a tirinha “Dykes to Watch Out For” em diferentes jornais dos Estados Unidos, com histórias urbanas de um grupo de amigas lésbicas. Algumas dessas tiras que marcaram os quadrinhos americanos e pavimentaram o sucesso de Bechdel, sedimentado com sua autobiografia em quadrinhos, “Fun Home”, chegam finalmente ao Brasil com o lançamento de “O Essencial de Perigosas Sapatas”, com tradução da escritora Carol Bensimon, autora de “Todos Nós Adorávamos Caubóis”.

“Minha primeira missão com essas tiras era mostrar que lésbicas não eram más ou monstruosas, como foram historicamente retratadas”, diz a autora em conversa por email.

Na introdução desenhada para o volume, Bechdel reconstrói para o leitor a sua trajetória até chegar às tiras, rindo de sua incapacidade na escola de pensar numa carreira para a vida adulta, contando que costumava desenhar só homens e mostrando seus primeiros retratos de lésbicas. “Será que produzi episódios dessa tira a cada duas semanas por décadas apenas para provar que somos iguais a todos os outros?”, ela se questiona.

pagina em preto e branco com quadrinhos mostram mulheres abraçadas nuas na cama
Página de 'O Essencial de Perigosas Sapatas', de Alison Bechdel, com tradução de Carol Bensimon. (Foto: Reproducao) - Reprodução

“Queria nos mostrar em nossa vida cotidiana, como qualquer pessoa. Isso parecia um importante passo para desfazer a homofobia”, diz.

A homofobia ainda está aí, mas as tiras, que são mais longas que as tirinhas de jornal e ocupam o espaço de uma página de livro, foram um marco da diversidade nos quadrinhos, marcados até então por super-heróis heteronormativos ou personagens infantis e vistos como um produto consumido majoritariamente por homens.

E, a partir de uma de suas tiras, publicada em 1985, se popularizou o chamado teste de Bechdel, ferramenta que chegou a ser adotada nos cinemas da Suécia e que avalia filmes do ponto de vista da igualdade de gênero.

Pelas regras do teste, um filme só é aprovado se tiver ao menos duas personagens femininas com nomes e se elas conversarem uma com a outra sobre algo que não seja homens. Parece fácil, mas não é. Vencedores do Oscar como “Quem Quer Ser um Milionário?”, de 2008, a trilogia “O Senhor dos Anéis”, de 2001 a 2003, e até mesmo “O Grande Hotel Budapeste”, de 2014, foram reprovados.

O volume que acaba de sair, publicado originalmente em 2008, porém, não tem a tira “A Regra”, de 1985, que credita também Liz Wallace, amiga de Bechdel. Ela mostra duas mulheres passando na frente de um cinema, uma convida a outra para ver um filme, que responde ter regras para isso; ela apresenta então as regras do teste e diz que o último filme que conseguiu ver foi “Alien”.

É possível ler a tira numa postagem de 2005 do blog de Bechdel em seu site oficial, o dykestowatchoutfor.com. Organizado em ordem cronológica com uma seleção feita pela autora, o livro começa em 1987, ano em que aparece a personagem principal das histórias, Mo, uma livreira reclamona.

O teste, segundo Bechdel, funciona para qualquer tipo de arte narrativa e, diz ela, se aplicado aos quadrinhos o resultado seria o mesmo que no cinema –muitos não passariam. “Mas a tira na qual o teste aparece foi escrita mais de 35 anos atrás, e realmente tenho visto uma tremenda mudança no tipo de histórias que são contadas sobre mulheres”, ela afirma.

desenho de mulheres se beijando
Ilustração de Alison Bechdel que está na coletânea 'Perigosas Sapatas', da Todavia - Divulgação

As tiras de “Perigosas Sapatas”, é claro, passam no teste com louvor. “Por muito tempo eu mantive intencionalmente as tiras apenas com mulheres. Queria que os leitores experimentassem um mundo no qual mulheres não são vistas em relação aos homens. Nos meios mais populares, as mulheres eram mães ou par romântico ou qualquer outro ser unidimensional que estava ali só como suporte para personagens masculinos”, diz Bechdel.

Ela diz ainda que só começou a introduzir homens nas histórias quando sentiu que tinha alcançado um de seus objetivos, “mostrar as mulheres como seres humanos completos, com seus próprios desejos e preocupações”.

“Perigosas Sapatas” acabou um pouco antes da eleição de Obama. Bechdel diz que queria explorar coisas novas e que estava cansada de acompanhar “toda a depredação” do governo Bush. A tira teve, porém, um revival há cinco anos num jornal semanal do estado americano de Vermont, com um capítulo chamado “Pièce de Résistance”, em que as personagens se reencontram para o Dia de Ação de Graças e comentam a vitória de Donald Trump.

“Os anos Obama foram ótimas férias para mim”, diz Bechdel. Ela conta que se manteve ocupada a ponto de não pensar em seus personagens, mas que, quando acordou no dia seguinte à eleição do republicano, achou muito útil filtrar aquela experiência por suas velhas conhecidas personagens. “Imaginar como elas estavam se sentindo e o que faziam, e sobretudo como se conectavam umas com as outras, me ajudou a me sentir um pouco menos desesperada”, diz.

Há 15 anos, Bechdel lançou sua primeira graphic novel, “Fun Home”, lançada no Brasil pela Conrad e hoje editada pela Todavia. Ali, ela narra sua adolescência e sua relação com o pai, que era homossexual. O livro virou musical da Broadway, foi indicado a 12 prêmios Tony e levou cinco deles.

Bechdel, que hoje tem 60 anos, diz que queria contar a história de seu pai desde que tinha 20, logo depois da morte dele, mas que naquela época não parecia possível falar sobre os segredos da família. “Ninguém sabia que ele era gay, ninguém sabia que ele se suicidou. Minha família não estava preparada para que tudo aquilo fosse escancarado. Mas, 20 anos depois, o mundo tinha mudado o suficiente para que eu sentisse que podiam lidar com isso.”

Suas outras duas graphic novels também são autobiográficas, “Você É Minha Mãe?”, lançada pela Quadrinhos na Companhia, em 2012, e “The Secret to Superhuman Strength”, ou o segredo da força super-humana, lançado em maio deste ano. Bechdel diz que o álbum de 2012, sequência de “Fun Home” que retrata sua relação com a mãe, uma atriz presa a um casamento infeliz, é sobre sua tentativa de mostrar às pessoas como a terapia em psicanálise foi transformadora e a salvou.

Já a nova história é uma engraçada reflexão sobre a conexão entre corpo e mente. Bechdel diz que sempre viu no exercício físico uma maneira de manter os pés no chão e que, mesmo que tenha conseguido manter uma forma física aceitável ao longo da vida, percebeu que vem perdendo força, agilidade e flexibilidade com a idade. “Estou tentando aceitar isso, e o livro é um esforço nesse sentido, mas ainda não cheguei lá.” O novo livro tem previsão de chegar ao Brasil em 2022.

O Essencial de Perigosas Sapatas

  • Preço R$ 109,90 (416 págs.); R$ 69,90 (ebook)
  • Editora Todavia
  • Autora Alison Bechdel
  • Tradução Carol Bensimon
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