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Cinema

Cinemateca agoniza com descaso de Mario Frias, Justiça e setor privado

Tragédia mostra que não há promessa do governo que mereça ser levada em conta, nem espera que seja suportável

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Rio de Janeiro

A política do fogo forma suas labaredas na era Bolsonaro. Das vastidões florestais do Pantanal e da Amazônia aos arquivos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, sentimos a fumaça irrespirável. Não há mais como vedar nossas portas e janelas.

A perícia deve apresentar as razões do incêndio no galpão da Cinemateca na Vila Leopoldina, nesta quinta-feira, definindo a origem da faísca e as responsabilidades do desastre. Em fevereiro do ano passado, uma enchente destruiu boa parte do acervo do térreo. Agora, um levantamento prévio indica a queima do arquivo impresso no primeiro andar.

As caixas incineradas continham papéis de órgãos de cinema, como a extinta Embrafilme, e documentos oriundos do arquivo Glauber Rocha, ali depositados. Em menor número, cópias de filmes. Equipamentos e mobiliários históricos também foram perdidos.

A destruição do registro das políticas institucionais e da existência material dos filmes representa uma perda relevante da memória do audiovisual brasileiro. Às 23h, o crítico Carlos Augusto Calil, ex-diretor da Cinemateca, fez um balanço melancólico, por telefone: “Tudo o que, por sorte, foi salvo na enchente, agora acabou. Quatro toneladas de documentação de órgãos de cinema desde 1967. Entre a água e o fogo, acabou”.

No ano passado, o Ministério Público Federal pediu à Justiça a renovação urgente do contrato da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), administradora do acervo, e o repasse do orçamento anual de R$ 12,2 milhões. As falhas na segurança, a demissão expressiva de funcionários, os abalos na manutenção de filmes com base de nitrato de celulose —de fácil autocombustão— e o risco de incêndio eram alardeados pela imprensa. Esse quadro de incúria, porém, não impressionou a Justiça.

“Em sua decisão, a juíza federal Ana Lúcia Petri Betto afirma que a União comprovou a adoção das medidas de preservação do patrimônio histórico do acervo, não havendo, portanto, necessidade de medidas de ordem coercitiva”, informou a Folha em 3 de agosto de 2020.

No dia 7, sob ameaça policial, a Acerp entregou as chaves da Cinemateca ao governo Bolsonaro. Encerrava-se a etapa de asfixia financeira. A partir dali, o colapso seria regido diretamente pelo secretário especial da Cultura, Mario Frias, irrelevante como ator e gestor, mas elevado a guardião de 250 mil rolos de filmes e mais de 1 milhão de documentos.

A convivência entre fogo e memória assombra a trajetória da Cinemateca, atingida por cinco incêndios desde 1957. Sua agonia tem parentesco com outras tragédias recentes. Reduzido a cinzas em setembro de 2018, no Rio de Janeiro, o Museu Nacional atesta que qualquer instituição cultural brasileira se organiza em meio ao risco de sua própria extinção.

O depósito da Vila Leopoldina em chamas prenuncia um incêndio maior no coração da Cinemateca. A mera denúncia dos impasses burocráticos se tornou infrutífera: não há promessa do governo que mereça ser levada em conta, nem espera que seja suportável. Uma intervenção judicial precisa ser articulada para tirar o acervo das mãos de seus inimigos.

Em nota, os trabalhadores da Cinemateca constataram o fracasso do modelo da gestão via organização social e pediram “estabilidade e garantia de equipe técnica a longo prazo, oferecendo à instituição um orçamento compatível com os necessários serviços de preservação e difusão do audiovisual brasileiro”. Por trás desse apelo, há todos aqueles que enchem de vida o acervo.

Enraizada em São Paulo, a Cinemateca nasceu de um esforço nacional para conferir uma história ao nosso cinema, complementando o trabalho do pensamento crítico. Devemos nos orgulhar de cada negativo depositado em seus galpões. Sua existência é um choque de autoestima numa cinematografia que chegou a ser considerada a melhor do mundo por dom Luis Buñuel, admirador de “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

A asfixia do Estado a arquivos e filmes não condiz com o país que produziu cineastas como Glauber Rocha e Júlio Bressane. E, não devemos esquecer, o setor privado tem semelhante indiferença. Nenhum bilionário sensível ou insensível, sentimental ou mesquinho, socorreu financeiramente a Cinemateca em seu colapso.

O debate teórico sobre a inspiração ideológica do governo Bolsonaro no fascismo ganha uma cor diferente no setor cinematográfico. A presumida filial atribui menos importância ao cinema do que a matriz.

Na Itália, o filho cinéfilo do Duce, Vittorio Mussolini, diretor da revista Cinema, conferiu ambiguidade à relação do regime com cineastas do porte de Roberto Rossellini e Luchino Visconti. Na Alemanha, Goebbels convidou o mestre Fritz Lang para dirigir filmes nazistas. Lang, que não era de colaborar com obscurantistas, arrumou as malas e fugiu para Paris.

Na falta de paz teórica, observamos um sub-fascismo ignaro desmantelar o país com fogo, bala e vírus.

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