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Luto e dor dominam onda de livros que chegam no rastro dos 500 mil mortos de Covid

Noemi Jaffe e Hugo Gonçalves refletem sobre perda da mãe em obras que falam aos enlutados pela pandemia

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'Mourning Woman', de Egon Schiele

'Mourning Woman', pintura do austríaco Egon Schiele Reprodução

São Paulo

Depois da perda de um familiar, boa parte das pessoas procura maneiras de abreviar ou de aliviar a dor, na tentativa de passar pelo luto o mais rápido possível. Não é o caso da escritora Noemi Jaffe.

“Não queria elaborar o luto. Não queria permitir que a morte se tornasse memória, porque eu sabia que é inevitável que isso aconteça. Eu ficava escrevendo para manter a dor, não para diminuir a dor”, diz ela, justificando por que lança agora um livro sobre os momentos finais de sua mãe, uma sobrevivente de Auschwitz, chamado “Lili”. “A aceitação da morte, para mim, significava me separar dela."

No relato de Jaffe, o leitor acompanha uma filha vendo sua mãe morrer, aos 93 anos, de infecção nos pés, à medida que é apresentado para a história de dona Lili, húngara que emigrou para o Brasil com o marido após a Segunda Guerra.

Mas, se a escritora deixou o buraco causado pela morte de sua mãe se fechar de forma lenta e saudável, como conta, ela reconhece que a literatura é uma maneira de lidar com o luto. Escrever é uma forma de reorganizar os sentimentos e os pensamentos, naturalmente caóticos, destaca Jaffe, já que o texto impõe limites.

“Você quer que a articulação das frases seja rítmica, que as imagens sejam fortes o suficiente para expressar a dor. À medida que você encontra esses caminhos, está elaborando a dor pela beleza, pelo ritmo.”

Não é de hoje que a literatura se debruça sobre o luto, embora esse tema ganhe especial atenção com mais de meio milhão de mortos por Covid no Brasil.

No início do século 20, em “Luto e Melancolia”, Freud descreveu o luto como um estado de ânimo doloroso marcado pela perda de interesse pelo mundo externo por parte do enlutado, já que o mundo não lembra o morto —para superar a perda é preciso realizar um trabalho psíquico, escreveu o pai da psicanálise.

À sua maneira, o crítico francês Roland Barthes realizou esse trabalho ao redigir uma série de fichas diárias nas quais refletiu sobre a solidão e as idas e vindas da tristeza depois de perder a sua mãe, nos anos 1970. “Diário do Luto” só foi publicado pela primeira vez em 2010 e se tornou uma referência sobre o tema.

Na visão do escritor português Hugo Gonçalves, ainda estamos “no olho do furacão” da Covid para entender o que a perda de milhões de vidas de 2020 para cá significa em termos literários, científicos ou sociológicos.

Embora o luto tenha se tornado presente na vida de muitos, ele diz que viver essa dor ficou mais difícil durante a pandemia, já que os pacientes de coronavírus morrem sozinhos no hospital, e os velórios tendem a ser curtos e com poucas pessoas, por causa das medidas de distanciamento.

“Os rituais existem por alguma razão. Existe a aptidão humana para a despedida, dizer adeus é muito importante para seguir em frente”, ele afirma. Gonçalves tampouco pôde dar adeus a sua mãe —quando tinha oito anos, ela morreu de câncer num hospital a 2.000 quilômetros de distância dele. “Ela saiu para ir para Londres e não voltou mais.”

O autor resgata essa tragédia no recém-lançado “Mãe”, livro de prosa ora poética, ora ensaística no qual relata uma série de viagens que fez para reconstruir a personalidade de sua mãe. Foram necessárias décadas entre a morte dela e a escrita da história. Por que tanto tempo?

“Durante 30 anos as memórias da minha mãe estavam prisioneiras da dor. É essencial para continuar a vida enfrentar essa perda, a fuga não é uma resposta”, ele diz, acrescentando que a ausência de sua mãe se manifestava, de variadas formas, em seus outros escritos e até nos relacionamentos afetivos.

Gonçalves afirma que não há tempo para ficar triste hoje, num mundo que demanda a felicidade constante, e compara o lento processo da elaboração de sua dor à fermentação do pão e do vinho, etapas necessárias e que não podem ser apressadas.

'Mourning Woman', de Egon Schiele
'Mourning Woman', obra do austríaco Egon Schiele - Reprodução

Para além do alento de dramas individuais, a literatura pode ter um papel no luto coletivo do coronavírus e na violência de Estado que envolve essas mortes, afirma a psicanalista e escritora Tania Rivera.

“É fundamental o compartilhamento durante o trabalho de luto, e esse compartilhamento tem a ver com o que a literatura e a arte realizam. Porque a literatura e a arte fazem do singular, do mais íntimo, algo que se transmite a outros, tanto envolvendo dor quanto prazer. Como se cada livro fosse uma armadilha para pegar a singularidade do leitor", diz ela. "Isso é de uma força, inclusive política, muito grande.”

Talvez o público esteja querendo, de fato, ler mais sobre o assunto. “Notas sobre o Luto”, no qual a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre a morte de seu pai durante a pandemia, passou seis semanas na lista de mais vendidos, e “O Ano do Pensamento Mágico”, relato da americana Joan Didion sobre a morte súbita do marido de ataque cardíaco, acaba de ganhar uma nova edição.

Os três autores concordam que a pandemia fez as pessoas olharem mais para a morte, um assunto ainda tabu. Mas tanto Jaffe quanto Rivera atentam para o risco da banalização do tema, dado o altíssimo número de vítimas de Covid no país.

“O país sempre teve números monumentais. Isso não parece chocar ou tocar especialmente muita gente porque fica no anônimo", diz Rivera. "As pessoas só entram em contato com isso quando sofrem por alguém próximo."

Lili

  • Quando Dia 22 de julho, às 19h; conversa entre Noemi Jaffe e Christian Dunker no YouTube da Companhia das Letras
  • Preço R$ 39,90 (112 págs.)
  • Autoria Noemi Jaffe
  • Editora Companhia das Letras

Mãe

  • Preço R$ 59,90 (184 págs.)
  • Autoria Hugo Gonçalves
  • Editora Companhia das Letras

NOTAS SOBRE O LUTO

  • Preço R$ 29,90 (144 págs.); R$ 16,90 (ebook)
  • Autoria Chimamanda Ngozi Adichie
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Fernanda Abreu
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