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A. O. Scott

Os filmes estão de volta aos cinemas, mas o que são filmes agora?

Serviços de streaming e salas de cinema devem coexistir por muito tempo

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A. O. Scott
The New York Times

Você viu “Velozes e Furiosos 9”? “Um Lugar Silencioso 2”? “Viúva Negra”? O que estou perguntando na verdade é se você já voltou às salas de cinema.

Nos últimos 30 dias ou pouco mais, com o relaxamento das restrições da pandemia e a reabertura de multiplexes e de cinemas de arte liberados para lotação próxima da plena nos Estados Unidos, alguns lançamentos se saíram bem o bastante nas bilheterias para alimentar esperanças de um retorno à normalidade anterior à Covid.

Vin Diesel, o patriarca de “Velozes e Furiosos”, declarou que “o cinema está de volta!”, e quem quer comprar briga com Vin Diesel?

Com certeza não os críticos —eu fui um deles— que receberam os quase 150 minutos de ação extravagante, trama barroca e sentimentalismo pesado de “Velozes e Furiosos 9” com sinais gentis de gratidão.

Sejamos honestos –num momento mais normal, o exagero e incoerência dessa última parcela de uma franquia já veterana teria despertado algum ceticismo, se não desdém escancarado. Mas depois de mais de um ano em que sobrevivemos de links de streaming, descobrimos que as zonas críticas de nossos cérebros estavam inundadas de endorfina lisonjeira.

Talvez os fãs tenham sentido coisa parecida. Mas, bom ou ruim, o filme sem dúvida ofereceu momentos de diversão, e com eles o lembrete sobre aquilo que vinha nos fazendo falta e sobre aquilo que realmente nos agrada no cinema.

O mesmo pode ser dito sobre a continuação de “Um Lugar Silencioso”, um filme de horror passável que ajudou os fãs a recuperar o prazer específico de passar por momentos de susto em companhia de completos desconhecidos.

“Viúva Negra”, lançado simultaneamente nas salas de cinema e no serviço de streaming Disney+, ofereceu a dose necessária de aventuras de super-heróis.

Podemos encontrar experiências semelhantes —e filmes melhores— na Netflix, Amazon e Apple TV+. Mas na telona, as coisas podem ser sexy, assustadoras, engraçadas ou empolgantes de um jeito especial, e há um deleite em comprar um ingresso e assistir a um filme inteiro, sem a ideia de parar, pular para mais adiante ou voltar ao cardápio principal.

Você corre o risco de decepção, mas mesmo o tédio ou a repulsa podem ser divertidos, especialmente se você tem companhia em sua miséria. E há sempre o potencial de uma surpresa.

Tudo isso só para dizer que o temor, acelerado pela pandemia, de que o streaming mataria o cinema não se confirmou. As pessoas gostam de sair de casa. O que não significa que a situação do passado tenha sido restaurada. Ela não era assim tão boa, aliás.

As franquias de “blockbusters” sugavam todo o ar das salas de cinema, e filmes mais idiossincráticos lutavam por uma fatia cada vez menor do mercado; os filmes ousados de festivais estavam enterrados nos algoritmos da Netflix ou encalhados nas plagas distantes dos serviços de vídeo “on demand”; a presença cultural do cinema de arte era cada vez menor, em um universo de conteúdo em expansão. É essa a normalidade que queremos?

Deixando de lado os desordenamentos do coronavírus, a cultura do cinema —o cosmos de suposições e aspirações que impulsiona artistas e audiências a ir além dos imperativos do comércio— parece ainda mais instável do que costuma, mais eivada tanto de perigo quando de possibilidade.

O momento que vivemos pode ser o de uma alteração sísmica, semelhante ao da introdução do cinema falado no final da década de 1920, ou ao do colapso do sistema dos grandes estúdios, décadas mais tarde.

É cedo demais para dizer para onde tudo isso está indo, e existe motivo para otimismo e não só para preocupação. Mas me preocupar é parte da minha natureza e também da minha profissão.

A confusão e ambivalência que precederam a pandemia intensificaram o grau em que uma pergunta inocente, por exemplo sobre se você viu “Velozes e Furiosos 9” em uma sala de cinema, pode se tornar gatilho de um confronto na guerra cultural.

Algo que seria, para a maioria das pessoas, uma questão de escolha pessoal —ficar em casa e assistir a isso ou sair e assistir àquilo— muitas vezes termina tratado, ao menos pelos jornalistas que cobrem mídia e tecnologia, como se fosse uma questão de comprometimento ideológico e de um jogo econômico no qual alguém precisa perder para que outros possam sair ganhando.

Um determinismo tecnológico dogmático e inflexível, que vê o streaming como inevitável e talvez receba positivamente a morte de uma atividade antiquada e ineficiente, é respondido por uma sentimentalidade igualmente dogmática sobre a superioridade estética e moral de ir ao cinema do modo tradicional.

Minhas simpatias estão do lado dos cinéfilos, mas não consigo deixar de perceber a ingenuidade das esperanças que estão por trás das expressões mais estridentes de supremacia do cinema ao modo tradicional, um apego ao passado que é tão pouco vinculado à história quanto as ousadas profecias de um futuro digital.

Tenho idade suficiente para me lembrar de quando filmes eram difíceis, em alguns casos impossíveis, de assistir. Algumas cidades tinham cinematecas ou sociedades universitárias de cinema, mas sem isso a melhor oportunidade de assistir a alguma coisa antiga seria na programação da madrugada de uma estação local de TV.

O interesse obsessivo pelos filmes era alimentado principalmente pela leitura de velhas resenhas e das sátiras da revista Mad.

O que mudou isso tudo foi a revolução dos filmes em casa, iniciada com as videolocadoras e canais de cabo como o Turner Classic Movies e o velho Bravo (que costumava mostrar muitos filmes estrangeiros, se é que você acredita).

A imensa variedade de filmes hoje disponíveis para compra ou locação, ou via assinaturas de streaming, é fonte de espanto para um veterano como eu, mesmo que meus filhos, meus alunos e meus colegas mais jovens nada vejam de surpreendente nisso.

E esse fato em si pode ser um problema. Quando tudo é acessível —e sei que não estou falando de literalmente tudo, e que essa acessibilidade não é igual para todos—, nada é especial. Os filmes existem, no éter digital, em companhia de inúmeras outras formas de diversão e distração, privados de um senso de lugar.

Publicações como esta podem avisar os leitores sobre títulos que estão a ponto de deixar uma determinada plataforma, ou publicar listas e histórias orais nos aniversários de grandes filmes, mas a maior parte do arquivo que está nas pontas de nossos dedos permanecerá inexplorada.

E ainda assim o arquivo está lá, crescendo a cada mês, pelo menos enquanto as companhias que detêm os direitos sobre os filmes encontrarem forma de monetizar esse conteúdo. Mas esses filmes ocupam um cantinho modesto do vasto universo algorítmico.

Temo que os filmes estejam se tornando menos especiais e mais especializados. Os filmes de grandes estúdios, baseados em propriedades intelectuais estabelecidas, se tornam menos interessantes por escolha, enquanto os lançamentos menores atendem aos interesses de comunidades dispersas de pessoas de gostos afins.

Os grandes sucessos mundiais, concebidos para apelar à maior audiência possível, bloqueiam a conversação por definição, ao oferecer temas vagos e tramas superficialmente complexas em lugar de estímulo à reflexão. O negócio das franquias é recrutar fãs e estender marcas.

E a lógica da cultura de fãs —a defesa ferrenha dos favoritos, a rejeição feroz a quem os odeie, a ascendência dos sentimentos com relação aos argumentos— se estende aos alcances mais esotéricos da cinefilia online.

Enquanto isso, o largo território intermediário que definia a glória e o potencial do cinema popular —as diversões de cultura pop que vale a pena discutir seriamente, as coisas sobre as quais todo mundo parece estar falando, online ou no trabalho— continua a migrar para a televisão. Se esse é o termo certo.

O que é cinema, e, se você sabe o que é cinema, o que é televisão? A questão parafraseia o que Gertrude Stein disse sobre a diferença entre poesia e prosa. Como na questão original de Stein, a resposta é tanto óbvia do ponto de vista intuitivo quanto teoricamente confusa.

Para cada distinção simples —entre a sala de cinema e a tela caseira, entre as histórias estanques e as narrativas seriais, entre uma mídia diretorial e uma mídia dominada pelos roteiristas, entre uma forma de arte e uma peça de mobília— existe uma refutação imediata. Três palavras podem bastar para pôr o assunto numa confusão permanente, Universo Cinematográfico Marvel.

A Disney, dona da Marvel (e da Pixar, “Star Wars” e ESPN, além de parques temáticos e navios de cruzeiro) tem reservas incomparáveis de dinheiro, mão de obra e talento para sustentar sua posição como marca de entretenimento dominante no planeta. Este ano vimos três séries Marvel (“WandaVision”, “Falcão e o Soldado Invernal” e “Loki”), além de “Viúva Negra” e “Eternals”, que chega aos cinemas em novembro.

Um motivo para que os serviços de streaming e as salas de cinema devam coexistir por muito tempo é que as mesmas empresas esperam extrair lucros de ambos. Em seu final de semana de estreia, “Viúva Negra” faturou US$ 80 milhões nas bilheterias dos Estados Unidos e mais US$ 60 milhões em assinaturas premium da Disney+.

Ainda que não cobre adicional, a Warner parece abrigar ambições semelhantes para o épico de ficção científica “Duna”, que estreará nas salas de cinema e na HBO Max no final do ano.

Manchetes recentes oferecem novas provas de que, em nível corporativo, as fronteiras entre filme, televisão e internet não só são confusas como obsoletas. A Disney devorou a Fox. A Warner e sua irmã empresarial HBO Max foram vendidas pela AT&T à Discovery. A Apple e a Amazon adquiriram imóveis que abrigaram grandes estúdios do passado em Los Angeles. A Amazon tomou o controle da MGM. Empresas de tecnologia são estúdios de cinema. Estúdios de cinema são redes de TV. A televisão está na internet.

Em nível de empreitada criativa e de recepção popular, as velhas fronteiras vêm sendo porosas há muito tempo. Em sua melhor forma, a mobilidade do talento transformou em rotina uma flexibilidade que costumava ser rara.

Romances que no passado eram comprimidos em adaptações cinematográficas de duas horas de duração, ou atenuados para a TV aberta —“Normal People”, “O Gambito da Rainha”, “Complô contra a América”— agora têm como encontrar um escopo episódico que parece mais orgânico.

Cineastas como Barry Jenkins (“The Underground Railroad”) e Luca Guadagnino (“We Are Who We Are”) podem testar sua capacidade em formas narrativas mais extensas e complicadas. Atores, especialmente mulheres e pessoas não brancas, podem escapar aos papéis clichê que estavam entre as tradições mais duradouras e exasperantes de Hollywood.

Porque aquilo que costumávamos chamar de televisão está rapidamente se tornando sinônimo de streaming, uma mídia que funciona por assinatura, as velhas maneiras de medir sucesso —índices de audiência e bilheterias— não se aplicam mais. (Ou raramente estão disponíveis publicamente.) Isso dá alguma liberdade aos criadores de séries e cineastas cujo trabalho se torna parte permanente de um acervo disponível para qualquer pessoa que pague a assinatura mensal.

A expansão das oportunidades criativas gera um excedente de conteúdo que pode bem vir a se provar insustentável, a mais recente em uma série de bolhas induzidas pela tecnologia. Quantas assinaturas cada um de nós pode bancar? Quanto estamos dispostos a gastar para assistir a filmes pagos — adquiridos no iTunes, ou via serviços de vídeo “on demand”—, além de nossas assinaturas mensais da Netflix ou HBO Max? Essas questões domiciliares corriqueiras têm profundas implicações culturais.

Se nos ativermos às plataformas e consumirmos o que for conveniente — aquilo pelo que já pagamos e que os amistosos robozinhos das telas nos recomendam —, corremos o risco de circunscrever nosso gosto e limitar o alcance de nosso pensamento.

Talvez isso tudo não se relacione aos filmes. A atenção —sua, minha, o agregado de todos os olhos, ouvidos e cérebros do planeta— é uma commodity valiosa e abundante, renovável se bem que não infinita. Cada artista, escritor, estúdio de cinema, veículo tradicional de mídia, plataforma de mídia social, rede de televisão e serviço de streaming está competindo por uma parcela dela. Isso sempre foi verdade, em algum grau, mas a intensidade da competição e o alcance global do mercado assim criado são novos.

Pela maior parte da história humana, a vida esteve repleta de tédio e trabalho duro. O lazer era escasso, precioso e distribuído de forma irregular. Quando a arte não era um produto rarefeito, ela era caseira e estava sempre à mão.

Hoje, existe uma economia internacional para ocupar nosso tempo com imagens, histórias e outras diversões. Os subprodutos dessa economia —a cultura de fãs, as notícias sobre celebridades, a mídia secundária que ajuda a separar, classificar, interpretar e apreciar— ocupam o mesmo espaço virtual que os artefatos primários, e assim tanto os complementam quanto competem com eles. Você pode ver o programa, ler o resumo, ouvir o podcast e postar suas respostas, usando as telas e teclados que tiver à mão.

Essa também é, cada vez mais, a maneira pela qual trabalhamos, convivemos socialmente e nos educamos. Não é que sejamos viciados em telas –somos seus servos e pagamos pela conveniência, prazer ou conhecimento que oferecem com nosso tempo e consciência. A tela não se importa com aquilo que você esteja olhando, desde que seus olhos estejam engajados e seus dados possam ser recolhidos.

Os filmes não criaram esses estado de coisas, mas são parte da tecnologia que o possibilita. Eles estimulam de forma inédita o apetite humano por imagens, narrativa e emoção vicária. Mas os filmes também podem ser vítimas de um mundo saturado de telas. No passado, era possível comprar um ingresso e deixar a realidade para trás; o espaço comunal da sala de cinema era também uma zona de intimidade, privacidade e anonimato.

Agora, as telas são instrumentos de vigilância, é claro. Quando a tela da Netflix pergunta “quem está assistindo?”, a verdadeira mensagem é que a Netflix está assistindo ao que fazemos. O ato de assistir não oferece escape; induz à passividade. Quanto mais você assiste, mais o algoritmo trabalha para transformar a ideia de você em uma realidade. À medida que a arte se torna conteúdo, o conteúdo se transmuta em dados, e é função de cada um de nós como consumidor os oferecer às empresas que nos vendem acesso à arte.

A questão não é determinar se os filmes sobreviverão, como passatempo, destinação ou recurso imaginativo, mas sim se o tipo de liberdade que “ir ao cinema” representou no passado pode ser preservado em um ambiente tecnológico que oferece entretenimento interminável, ao preço de nossa submissão; se é possível sustentar uma curiosidade crítica e ativa diante da dominação empresarial; se os artistas e audiências conseguirão sequenciar novamente o DNA democrático de uma mídia cujo potencial autoritário jamais foi tão sedutor. O que importa não é se vamos voltar ao cinema, mas como podemos retomar o cinema.

Tradução de Paulo Migliacci

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