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Sérgio Sant'Anna dialoga com a morte e a existência humana em livro póstumo

Escritor refaz trajeto que o consagrou como um dos maiores contistas do país nas histórias de 'A Dama de Branco'

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Guilherme Henrique
São Paulo

Como confidenciou a este jornal, em outubro de 2019, Sérgio Sant'Anna começou a escrever direto no computador tardiamente. Antes disso, só papel e caneta. E outras coisas mais. "Rabiscava maço de cigarro, guardanapo, até caixa de fósforo", conta seu filho, o também escritor André Sant'Anna. "Ainda bem que mudou de ideia, a caligrafia não ajudava."

A escolha pelo digital facilitou o trabalho do escritor e antropólogo Gustavo Pacheco, que garimpou nos arquivos do escritor, autor de obras como "A Tragédia Brasileira", de 1984, e "Amazona", de 1986, os textos, entre inéditos e outros já publicados, que compõem "A Dama de Branco", livro póstumo do contista vítima da pandemia em maio do ano passado.

O trabalho do ficcionista, apontado como um dos renovadores do conto no país, está dividido em duas partes. A primeira tem 17 contos, cinco deles inéditos. A segunda apresenta a novela "Carta Marcada", também inédita, que não estava totalmente finalizada quando ele morreu.

Um dia antes de ser internado, Sérgio Sant'Anna enviou a novela ao produtor Rodrigo Teixeira, que já adaptou obras do escritor para o cinema, como no filme "O Gorila", de 2012, baseado no conto "Crime Delicado". "Ele disse que não estava bem e que ia para o hospital. Faleceu uma semana depois", conta a este repórter. O futuro do projeto cinematográfico é indefinido.

Teixeira, então, encaminhou o texto para André, que o repassou para Alice Sant'Anna, editora da Companhia das Letras. "Havia marcações, sinalizações em alguns personagens. Fizemos um trabalho de edição, mas não escrevemos nada. Tudo o que está ali são palavras do Sérgio", conta Pacheco.

A novela de 80 páginas narra a vida de Júlio, um estudante de direito que não suporta o mundo jurídico, mas se acomoda na profissão ao entrar no escritório do pai. A história começa em Belo Horizonte, na década de 1960, com fragmentos que remetem à ditadura militar, mas sofre um corte abrupto para um Rio de Janeiro contemporâneo, com menções a aplicativos de transporte, por exemplo.

O tom memorialístico, as cenas de sexo, entre afetuosas e brutais, as análises de obras de arte, o diálogo com o teatro, o humor sagaz e a ironia elegante, atributos conhecidos de Sérgio Sant'Anna, estão dispersos ao longo do livro. "É uma obra-síntese", afirma Pacheco, que destaca ainda a narrativa de "Anticonto", texto de abertura, sobre a forma do gênero e seus entraves, uma fixação do escritor.

Não há, no entanto, nada mais premente no título do que o diálogo com a morte. No conto "A Dama de Branco", um homem recluso em meio à pandemia observa uma mulher que flana, sem máscara, pelo estacionamento do prédio vizinho. "É como se a morte o estivesse rondando", compara Alice Sant'Anna.

André contextualiza. "A pandemia mexeu com ele, mas há outra coisa. Meu pai nunca deu importância para a morte, mas, de uns anos para cá, estava gostando de viver, de escrever, tanto é que os textos foram feitos entre 2018 e 2020. Ele me disse que tinha medo da morte, mas no sentido de perder essa sensação prazerosa", acrescenta.

O gozo pelo ofício nem sempre foi a tônica na relação do pai com a literatura, lembra André. "Moramos juntos uma época e ele dizia que existem dois momentos prazerosos na literatura, a ideia e a publicação. O processo era um sofrimento horroroso. Isso ficou na minha cabeça, tanto que relutei em ser escritor."

As dúvidas foram dissipadas e André está prestes a publicar o sétimo livro, "Discurso sobre a Metástase", pela Todavia, simultaneamente ao título póstumo do pai. "Temos um estilo diferente, mas herdei dele um jeito provocativo. Se a crítica dizia que o texto devia ser enxuto, ele era prolixo, e eu absorvi isso", afirma.

A obra, que inclui crônicas, poemas e peças de teatro, acentua discussões sobre a sociedade brasileira abordadas desde "Sexo e Amizade", de 2007. "É algo que estamos vivendo há anos e que recai nessa turba que acompanha o Bolsonaro, uma guerra entre o pensamento e a estupidez. É a distopia final", afirma.

A distopia apontada por André também era criticada por Sérgio Sant'Anna, crítico mordaz do atual governo nas redes sociais. "Tivemos que desativar as páginas dele, com o tanto de xingamento que publicaram após sua morte. Mesmo sendo motivo de orgulho, era pesado demais ler aquilo."

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