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Cinema

'Dora e Gabriel' só reafirma a grandeza do cinema de Ugo Giorgetti

Filme que se passa inteiro dentro de um porta-malas escancara um Brasil sequestrado e sem destino

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Dora e Gabriel

  • Quando Estreia nesta quinta (23)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Ari França, Natalia Gonsales, William Amaral
  • Produção Brasil, 2020
  • Direção Ugo Giorgetti

À primeira vista não parece possível. Um longa que se passa inteiro —com exceção do início, uma cena de sequestro, e do final— dentro do porta-malas de um carro. Mas, sim, é possível. E mais que isso, Ugo Giorgetti conseguiu fazer de “Dora e Gabriel” um belíssimo filme, partindo de uma situação tão delicada para ele quanto para os seus personagens.

E para os personagens não era nada simples —o homem, Gabriel, tem o carro roubado e é colocado no porta-malas de seu próprio automóvel. Por coincidência ou azar, uma moça vê a cena e é nada gentilmente convidada a partilhar o apertado espaço com o homem.

Em princípio, todas as chances estão contra o cineasta. Vale, no entanto, não esquecer que ao longo de sua carreira Giorgetti nunca fugiu do risco. E aqui, à parte as questões formais —por exemplo, como evitar a monotonia num longa-metragem com dois personagens em situação de imobilidade—, existe outra, não menos problemática —o que exprimir com essas imagens que possa interessar ao espectador.

Como a sorte sem competência não serve para muita coisa, digamos que Giorgetti ajudou um bocado —escreveu ótimos diálogos para a situação constrangedora do par e acrescentou situações que variam da tensão à esperança de solução para o sequestro.

Dora tem um modo agressivo de ser esquiva em relação a Gabriel. Ela não aceita nem sequer que ele a toque —o que na situação é um tanto difícil. Em todo caso, é a última coisa em que Gabriel poderia pensar naquele momento. Dora, bem paulista, é uma soma de arrogância e estupidez; como Gabriel é libanês, ela já acha que ele é terrorista e, portanto, culpado por o que ela passa.

O homem se mostra conformado, é imigrante, há muito no Brasil. Ainda assim, percebemos nele a necessidade de se mostrar acessível, gentil, racional. Enfim, que a moça não o julgue pelo sotaque estrangeiro, por ser estrangeiro. Árabe, portanto suspeito.

Giorgetti já lidou bem com situações análogas. Quando, por exemplo, deixou um grupo de turistas perdidos à noite, em São Paulo, com seus terrores por companhia —“Uma Noite em Sampa”, de 2016. Ou quando deixou os artistas que iam se exibir em uma festa numa espera quase beckettiana —“Festa”, de 1989.

Dirigido por Ugo Giorgetti, o filme 'Festa' conta a história de um músico (interpretado por Jorge Mautner), um jogador de sinuca (Adriano Stuart) e seu assistente (Antonio Abujamra) contratados para uma festa de luxo, que nunca conseguem entrar nela
Dirigido por Ugo Giorgetti, o filme 'Festa' (1989) conta a história de um músico (interpretado por Jorge Mautner), um jogador de sinuca (Adriano Stuart) e seu assistente (Antonio Abujamra) contratados para uma festa de luxo, que nunca conseguem entrar nela - Divulgação

Isso para ficar em dois exemplos. Mas seu cinema, até aqui, tem tomado a cidade de São Paulo como ponto de sua observação do mundo. Seus personagens podem ser ricos ou remediados, artistas ou militares, decadentes ou afluentes. Mas são, antes de tudo, paulistanos.

Em “Dora e Gabriel” podemos dizer que isso se modifica. Não pelos personagens. Imigrantes libaneses e garotas de programa são frequentes por aqui. Tanto quanto o medo de sofrer um assalto ou, pior, um sequestro. Mas, por uma vez, São Paulo é apenas um ponto de partida.

O ponto de chegada é uma incógnita. Poderia ser qualquer lugar. Mas não é qualquer lugar, e isso faz toda a diferença. O ponto final é no Brasil.

Ao chegar ao final desse sequestro, apenas aí, o espectador descobrirá que tem sido, tanto quanto os personagens, alguém destituído de seu destino, que apenas segue em frente, balançando num carro guiado por outros, sem saber para onde ou por quê. E o final do sequestro será também uma espantosa surpresa.

Ugo Giorgetti chega a seu décimo longa de ficção com um controle completo sobre seus meios e clareza igualmente completa de ideias. É o que permite a ele manejar uma produção mínima com desenvoltura e se sair com um brilho que vem, mais do que da técnica, da sorte, da capacidade de definir os personagens, da boa direção de atores, de uma lucidez que o instala, de uma vez, como um dos grandes cineastas em atividade no Brasil —é algo que está mais do que na hora de se reconhecer.

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