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Cinema

São Paulo de Ugo Giorgetti sintetiza o Brasil de várias épocas

Mostra com filmografia do cineasta paulistano relembra obra particular em que pulsa um ponto de vista original

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São Paulo

Como classificar o cinema de Ugo Giorgetti? Ele se formou com antigos profissionais da Vera Cruz, na Linx Filme. Mas seus filmes não têm nada a ver com a Vera Cruz. Trabalhou com cinema publicitário, mas seus filmes não tem nada a ver com a publicidade. Também não passa pelo cinema novo, menos ainda pelo chamado marginal.

Esse lugar, o do “inclassificável”, credencia Giorgetti a ser um objeto fora da história. E, no entanto, a mostra de seus filmes que se inaugura no Espaço Itaú Frei Caneca (em comemoração, aliás, dos 20 anos desse conjunto de salas) nos diz algo inteiramente diferente. Sim, é um cinema paulista, ou antes, paulistano. É suas pessoas, seus hábitos, modos de agir e vestir que observa. E é um cinema não raro fincado na história.

Sobretudo em relação ao caráter paulistano existem precedentes, mas tão descontínuos que nem vale a pena mencionar. A questão que os filmes de Giorgetti apresentam de imediato é se o que se encontra neles representaria algo mais amplo. Ou seja, a partir de hábitos paulistanos não será a evolução dos costumes brasileiros que se deixa observar?

Dirigido por Ugo Giorgetti, o filme 'Festa' conta a história de um músico (interpretado por Jorge Mautner), um jogador de sinuca (Adriano Stuart) e seu assistente (Antonio Abujamra) contratados para uma festa de luxo, que nunca conseguem entrar nela
Da esq. para dir., Jorge Mautner, Antonio Abujamra e Adriano Stuart em cena do filme 'Festa', de Ugo Giorgetti - Divulgação

Pensemos em “Festa”. O filme se passa durante a longa espera de três artistas contratados para entreter os convidados de uma festa. Eles, porém, nunca são chamados. Não estamos numa espera tipo Beckett de “Esperando Godot”. Nunca serem chamados, nem sequer lembrados pelos donos da festa, ilustra bem a condição subalterna do artista numa sociedade dia a dia menos familiarizada com a arte, a cultura e a língua. E isso está longe de ser um privilégio paulistano ou paulista, bem infelizmente.

Alias, a ignorância petulante que invade nossos hábitos está presente em “Sábado”, seu filme seguinte, embora ali já se introduza um novo tema, o da transformação rápida da paisagem urbana. Transformação e deterioração, convém enfatizar —e não apenas da burguesia. Pois a mulher que desdenhosamente joga fora as medalhas do ex-oficial nazista que vivia no edifício não é ninguém da elite. A ignorância que começa por cima bombardeia as classes pobres desde a educação fundamental.

A transformação destrutiva parecerá vertiginosa em “O Príncipe”, de 2002, aos olhos do homem que volta da Europa onde viveu durante anos, e encontra sua casa, situada numa rua outrora tranquila, tomada pelos bares, trânsito, barulho e tumultos de uma Vila Madalena que virou moda.

Raras vezes alguém soube observar esse sentimento de habitar uma paisagem ao mesmo tempo familiar e inteiramente estranha, transformada. E Giorgetti o faz sem perder o humor ou, nos casos mais desesperadores, a ironia.

É ela que domina “Uma Noite em Sampa”, de 2016, em que a insegurança se manifesta no grupo de turistas que vem à cidade em excursão para assistir a uma peça de teatro —sendo que várias delas foram viver no interior para fugir de São Paulo. Quando o motorista desaparece, os artistas deixam o teatro, as luzes se apagam, o incômodo tende a virar pânico. Tudo pode acontecer, tudo parece uma ameaça (inclusive à pobre guia, ameaçada por seus clientes e com o emprego a perigo).

Giorgetti observa outro tipo de medo, o vivido por uma jovem que abriga em sua casa alguns revolucionários, no exato momento em que a tortura se abatia não só sobre os ditos subversivos, mas também sobre qualquer pessoa que colaborasse ou mesmo tivesse vagos contatos com eles. Em “Cara ou Coroa”, de 2012, essa garota topa abrigar alguns militantes perseguidos por forças da repressão na mesma casa em que habita seu avô, um velho general do exército.

O medo pode ser político, no caso, mas não era, no começo dos anos 1970, um sentimento exclusivamente paulistano, assim como o temor de assaltos pode ser sentido em qualquer lugar do Brasil. No entanto, o toque local é importantíssimo, pois cada lugar tem seu próprio processo, seus caminhos.

Se boa parte de sua filmografia envolve o sentimento de deterioração, de frustração com os caminhos do processo civilizatório brasileiro, uma outra nos lembra que nem sempre foi assim. A cidade de São Paulo mostrada no documentário “Uma Outra Cidade”, de 2000, gira essencialmente em torno do grupo dos poetas ditos novíssimos, que surgiu em São Paulo por volta de 1960, impulsionado pelas aulas com o filósofo Willem Flusser e pelo editor Massao Ohno.

Era uma cidade amena, esperançosa, projetando transformações que afetavam a paisagem mental e mesmo a urbana. O mesmo se pode dizer de “Quebrando a Cara”, de 1986, em que Giorgetti capta a intimidade de uma família de imigrantes italianos que vive em torno do talento especial do jovem Eder Jofre, duas vezes campeão do mundo de boxe, e orgulho de uma nação que ainda se projetava grandiosa, nos anos 1960.

Outra incursão pelo mundo do esporte rendeu a Giorgetti seu trabalho mais popular, “Boleiros”, de 1998, seguido de “Boleiros 2”, de 2006. Em ambos, o cineasta aborda o mundo do futebol com a mesma mescla de distanciamento e paixão, de ironia e amargura que se encontram em outros filmes que fez.

Estamos virando o século, e já não parece haver tantas esperanças em um avanço de civilização. Os personagens podem ser triunfais ou perdedores. Boa parte deles fica no meio do caminho, como o simplório Naldinho, papel de Flávio Migliaccio, veterano que gasta a maior parte de seu tempo no bar, conversando sobre os velhos tempos e se espantando por vezes com os novos.

Os da ativa vivem entre autógrafos, fanzocas, candidatas a casamento et cetera. Os veteranos trazem histórias que remetem à habilidade única que os tornou famosos, ídolos de um outro clube. Todos evocam um mundo simples, culturalmente, e dilacerante, socialmente.

Especial é a história de Otávio (Adriano Stuart, notável ator-fetiche que frequentou diversos filmes do cineasta), ex-craque, reduzido a instrutor de uma escolinha de futebol. Entre os diversos cabeças de bagre riquinhos que a frequentam e suscitam seu desânimo, encontra uma pérola, um jovem e fugidio marginal especialmente dotado para o futebol, em quem Otávio vislumbra um futuro craque. A sequência jogará Otávio num mundo pantanoso, de miséria absoluta. Miséria por sinal não muito diferente da experimentada por Paulinho Majestade, o ex-campeão do mundo que precisa pôr seus troféus à venda para sobreviver.

O mundo abordado por Giorgetti sabe ser ao mesmo tempo estreito e vasto. Viaja entre tempos diversos, hábitos conflitantes, perigos inesperados, surpresas que atiram seus personagens em abismos. Porque é de abismos que a sociedade brasileira (e não apenas paulistana) mais parece se constituir. De certa forma é preciso não fugir do lugar comum –Giorgetti mostra o mundo sem sair de sua cidade.

Ela pode surgir no presente ou no passado, se mostrar, por vezes, em forma de memória, evocando os rebeldes de uma cidade cheia de promessas (não cumpridas, é verdade), vivendo em torno da Biblioteca Mário de Andrade (quando não dentro dela), ou em bares que celebram encontros.

Esse olhar tão localizado pode por vezes se ampliar de forma espantosa. Assim com o sequestro –esse crime perverso tem algo a ver com as metrópoles, sem dúvida. E não é diferente no caso de “Dora e Gabriel”. Esses dois personagens, jogados no porta-malas de um automóvel e levados para lugar desconhecido, de repente se veem sem qualquer poder sobre seu destino. O sequestro acontece (ou ao menos começa) em São Paulo, mas é quase impossível não ver o filme como ser uma terrível metáfora do Brasil contemporâneo.

Essa capacidade de mostrar o país a partir de pequenos contos sobre uma cidade é só um dos motivos por que é preciso ver e reavaliar essa obra tão particular, talentosa e variada, em que pulsa um ponto de vista original e forte como poucas vezes o cinema brasileiro produziu.

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