Mikis Theodorakis, de 'Zorba, O Grego', fez música banida e libertária na Grécia

Conhecido pelas trilhas para o cinema, compositor foi marxista incendiário que travou guerra contra militares

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Robert D. McFadden
The New York Times

Mikis Theodorakis, célebre compositor grego e marxista incendiário que travou uma guerra verbal e musical contra uma junta militar infame que meio século atrás o encarcerou, o exilou como revolucionário e baniu seu trabalho, morreu na última quinta-feira em sua casa no centro de Atenas. Tinha 96 anos.

A causa da morte foi parada cardiopulmonar, segundo comunicado postado em seu site. Em comunicado lido na televisão estatal grega, sua família disse que o corpo do compositor será velado com honras de Estado. O primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis declarou três dias de luto nacional.

Theodorakis foi celebrizado internacionalmente principalmente pelas trilhas sonoras que compôs para os filmes “Zorba, o Grego”, de 1964, protagonizado por Anthony Quinn como o paradigma da etnicidade grega tumultuada; “Z”, de 1969, sátira sombria de Costa-Gavras sobre a junta militar grega, e o thriller de Sidney Lumet “Serpico”, de 1973, em que Al Pacino faz um policial de Nova York que trabalha clandestinamente para expor corrupção na polícia.

O compositor grego Mikis Theodorakis durante um ensaio em 1997
O compositor grego Mikis Theodorakis durante um ensaio em 1997 - REUTERS

No início dos anos 1970, exilados gregos costumavam compartilhar uma história sobre um policial de Atenas que faz sua ronda regular cantarolando uma canção proibida de Theodorakis. Ouvindo isso, um transeunte o interpela e diz “me surpreende que o senhor esteja cantando uma música de Theodorakis”. O policial então prende o homem, o acusando de ouvir música do compositor.

As contradições eram parte do cotidiano da Grécia na era da junta que reprimiu milhares de adversários políticos enquanto esteve no poder, de 1967 a 1974. Para muitos gregos, porém, Theodorakis era um metrônomo da resistência. Foi encarcerado por seus ideais, mas sua música rebelde e banida lembrava a seu povo sobre as liberdades perdidas. “Sempre convivi com dois sons –um político, um musical”, ele contou ao New York Times em 1970.

Depois de ser libertado de um campo de detenção, em 1970, Theodorakis iniciou uma campanha internacional de concertos e encontros com líderes mundiais, algo que ajudou a derrubar o regime de Atenas quatro anos mais tarde. Foi um momento de virada para a democracia, com uma nova Constituição e o ingresso da Grécia na Comunidade Econômica Europeia, que mais tarde se tornaria a União Europeia.

Como o compositor mais ilustre do país, Theodorakis compôs sinfonias, óperas, balés, trilhas sonoras de filmes, música para o teatro, marchas para manifestações de protesto e canções sem fronteiras –um trabalho composto de centenas de obras clássicas e populares que jorravam de sua pena em tempos ruins e bons, mesmo quando ele estava confinado em celas de prisão, campos de concentração miseráveis, ou em seus anos de exílio num vilarejo remoto nas montanhas.

Theodorakis também escreveu hinos de resistência cantados em tempos de guerra e poemas tonais socialistas sobre o sofrimento dos trabalhadores e povos oprimidos. Seu trabalho mais famoso a tratar da perseguição política foi a dolorosa “Trilogia de Mauthausen”, cujo nome se deve a um campo de concentração nazista da Segunda Guerra Mundial usado principalmente no extermínio da intelligentsia dos países europeus conquistados. A trilogia já foi descrita como a música mais bela já composta sobre o Holocausto.

O compositor grego Mikis Theodorakis em foto de 2018
O compositor grego Mikis Theodorakis em foto de 2018 - AFP

A música de Theodorakis fez dele um comunista rico. Tendo cumprido seu dever para a sociedade, ele não se envergonhava de sua vida privilegiada como deputado, com residências em Paris, Atenas e no Peloponeso grego; de ser festejado em premières de suas obras em Nova York, Londres e Berlim, nem de contar líderes culturais e políticos da Europa, América e Oriente Médio entre seus amigos.

Durante a Segunda Guerra Mundial ele ingressou num grupo de jovens comunistas que combateu as forças de ocupação fascistas na Grécia. Após a guerra, seu nome apareceu numa lista da polícia de participantes na resistência à guerra, e, juntamente com outros milhares de suspeitos comunistas, ele foi preso e encarcerado por três anos num notório campo de prisioneiros na ilha de Makronisos. Ali ele contraiu tuberculose, foi torturado e sujeito a execuções simuladas, sendo sepultado vivo.

Theodorakis estudou em conservatórios de música de Atenas e Paris na década de 1950, compondo sinfonias, música de câmara, balés e diversas rapsódias, marchas e adagios. Ele musicou os versos de poetas gregos eminentes, muitos dos quais comunistas. E aprofundou seus vínculos com o comunismo –quando a Grécia virou um campo de batalha da Guerra Fria, ele atribuiu a culpa não a Stalin, mas à CIA.

Ele foi profundamente afetado pelo assassinato em 1963 do célebre ativista antiguerra Grigoris Lambrakis, atropelado intencionalmente por fanáticos de direita numa motocicleta durante um protesto pacifista em Tessalônica.

O assassinato de Lambrakis, acontecimento crucial da história grega moderna que foi retratado de maneira apenas levemente ficcionalizada no filme de Costa-Gravras como sendo obra de líderes da junta militar subsequente, desencadeou grandes manifestações de protesto e uma crise política nacional.

Theodorakis fundou uma organização de jovens que recebeu o nome de Lambrakis e promoveu protestos políticos em todo o país, ajudando a o eleger para o Parlamento em 1964 numa chapa filiada aos comunistas.

Quando a Grécia mergulhou em turbulência política e econômica, em 1967, o coronel George Papadopoulos liderou um golpe militar que tomou o poder, suspendeu as liberdades civis, aboliu os partidos políticos e criou tribunais especiais. Milhares de adversários políticos foram encarcerados ou exilados.

Theodorakis, que estivera em Cuba pouco antes visitando Fidel Castro, mergulhou na clandestinidade. Uma ordem de prisão foi emitida contra ele, e um tribunal militar o sentenciou à revelia a cinco meses de prisão. Os gregos foram proibidos de tocar, vender ou mesmo ouvir sua música.

Meses mais tarde ele foi detido e encarcerado em Atenas. Continuou a compor música em sua cela. Cinco meses mais tarde, ele, sua mulher e os dois filhos do casal foram degredados em Zatouna, um vilarejo nas montanhas do Peloponeso, onde passaram três anos.

Leonard Bernstein, Arthur Miller, Harry Belafonte e o compositor Dmitri Shostakovich lideraram chamados pela libertação de Theodorakis, em vão. Nos últimos meses de sua detenção, em 1970, ele foi transferido para um campo de prisioneiros em Oropos, ao norte de Atenas. Theodorakis apresentava febre e estava cuspindo sangue. Para sufocar rumores segundo os quais teria sido espancado até a morte, a junta o mostrou a jornalistas estrangeiros.

Mikis Theodorakis durante entrevista à Reuters em 1989
Mikis Theodorakis durante entrevista à Reuters em 1989 - Reuters

O governo europeu disse à Grécia que ela estava violando seu tratado de direitos humanos e exigiu que a junta militar pusesse fim à tortura, libertasse os prisioneiros políticos e promovesse eleições livres. Os coronéis rejeitaram o apelo, mas libertaram Theodorakis, o enviando com sua família para o exílio em Paris, onde ele foi hospitalizado e tratado da tuberculose.

Três meses mais tarde ele regeu a London Symphony Orchestra tocando sua triunfal “Marcha do Espírito”. A emoção do público transbordou. “Foi como se o próprio Zorba estivesse regendo”, escreveu a Newsweek na época. “Quando a música terminou, a plateia não o deixou partir. Os aplausos e vivas prolongados e gritos rítmicos de ‘Theodorakis, Theodorakis!’ o fizeram voltar ao palco cinco vezes.”

Esse concerto deslanchou uma campanha de quatro anos de Theodorakis pela deposição pacífica da junta militar. Ele percorreu o mundo fazendo concertos em todos os continentes para levantar fundos para a causa da democracia grega. Recebeu o apoio de líderes culturais e políticos. No Chile, encontrou o presidente marxista Salvador Allende e o poeta Pablo Neruda. Mais tarde, compôs movimentos para o “Canto Geral”, a história do Novo Mundo escrita por Neruda, vista desde uma perspectiva hispânica.

Theodorakis foi recebido pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, pelo marechal Tito, da Iugoslávia, pelo líder palestino Yasser Arafat e pelo presidente francês François Mitterrand. O líder sueco Olof Palme, o chanceler Willy Brandt, da Alemanha Ocidental, e a velha amiga Melina Mercouri, atriz que mais tarde se tornaria a ministra grega da Cultura, prometeram ajuda a ele. Artistas e escritores de todo o mundo se tornaram seus aliados.

Em 1973, diante da pressão internacional e de uma população civil intranquila, a situação da junta militar já se tornara instável. Um levante estudantil em Atenas ganhou força e se converteu em rebelião aberta. Centenas de civis foram feridos, alguns deles fatalmente, em enfrentamentos com tropas. O coronel Papadopoulos foi afastado, e um novo líder de linha dura declarou lei marcial. A junta caiu no ano seguinte, quando oficiais militares de alta patente deixaram de apoiar o regime.

Em questão de dias Theodorakis voltou à Grécia em triunfo, saudado por grandes multidões. Sua música passou a ser tocada constantemente nas rádios. “Minha alegria agora é a mesma que senti quando aguardava numa cela para ser torturado”, ele disse. “Foi tudo parte da mesma luta.”

O ex-primeiro-ministro Constantine Karamanlis também voltou do exílio, formando um governo de unidade nacional. A monarquia grega foi abolida, uma nova Constituição foi adotada e em 1981 a Grécia ingressou na Comunidade Econômica Europeia.

Michael George Theodorakis nasceu na ilha de Chios, no mar Egeu, em 29 de julho de 1925, o mais velho dos dois filhos de Georgios e Aspasia Theodorakis. Ele e seu irmão, Yannis, foram criados em cidades provinciais. Seu pai era advogado. Sua mãe, de etnia grega mas nascida na atual Turquia, ensinou música folclórica grega e liturgia bizantina a seus filhos.

Yannis se tornou poeta e compositor. Mikis escreveu suas primeiras canções sem instrumentos musicais e deu seu primeiro concerto aos 17 anos. Em 1953 ele se casou com Myrto Altinoglou. Eles tiveram dois filhos, Margarita e George.

Após seu retorno do exílio, em 1974, Theodorakis Theodorakis voltou a fazer turnês de concertos e se tornou diretor musical da orquestra sinfônica da Rádio e Televisão Helênica. E voltou à política, sendo membro do Parlamento nos anos 1980 e 1990.

Em 1988 ele deixou o Partido Comunista e se aliou a setores conservadores que deploravam os escândalos do governo de Andreas Papandreou e os atentados a bomba atribuídos a terroristas de esquerda. Mas em 1992 renunciou ao cargo de ministro do governo conservador e voltou a se alinhar com os socialistas.

Agraciado com o prêmio Lênin da Paz em 1983, Theodorakis escreveu livros sobre música e política, além de uma autobiografia em cinco volumes, “The Ways of the Archangel”, ou os caminhos do arcanjo. Aposentado, condenou a guerra dos Estados Unidos no Iraque e as políticas conservadoras de Israel. Com seus olhos penetrantes e cabelos grisalhos desgrenhados, conservou o visual aguerrido de um rebelde ou profeta, mesmo na casa dos 80 anos.

Em 1973, durante seu exílio, ele apresentou no Avery Fisher Hall, em Nova York, um apanhado amplo de sua obra, incluindo uma trilogia baseada nos poemas de Neruda.

“Os elementos subjacentes à música de Theodorakis são simples”, escreveu John Rockwell em artigo para o New York Times. “Melodias que comovem e mobilizam, ritmos de dança e a sempre-presente cor exótica do bouzoki.” Mas, ele destacou, embora Theodorakis “faça uso criativo e brilhante de seus materiais populares, ele os transcende rapidamente”.

“Em última análise, não podemos separar sua política de sua música. É fácil entender por que este é tipo de música que algumas pessoas sentem que precisam proibir.”

Tradução de Clara Allain

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