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Árias da corte francesa falam da dor de amar sem a sofrência sertaneja

Disco 'Nossos Espíritos Livres' reúne canções que antecederam óperas trágicas do reinado de Luís 14

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Nossos Espíritos Livres: Árias da Corte Francesa do Século 17

De Camões a Cartola, as dores de amores nem sempre são expostas em sua crueza explícita. Seja em verso puro ou melodia cantada, elas podem ser também teatralizadas, matizadas e representadas
com algum distanciamento.

Gravado em Curitiba por músicos especialistas nas especificidades dos repertórios renascentista e barroco, o disco “Nossos Espíritos Livres” apresenta um programa de “airs de cour” —árias de corte—, gênero de canção com forte presença na França nos séculos 16 e 17.

Os compositores —Pierre Guédron, François Richard, Joseph Chabanceau de la Barre e Michel Lambert, entre outros— são praticamente desconhecidos do público habitual de música clássica.

O projeto é liderado por Marília Vargas —soprano—, Roger Burmester —alaúde e guitarra barroca— e Silvana Scarinci —arquialaúde e teorba—, com a participação de Raquel Aranha e Juliano Buosi, nos violinos barrocos.

Gravura mostra uma mulher italiana que canta acompanhada de uma teorba
Gravura mostra uma mulher que canta acompanhada de uma teorba - Biblioteca Nacional da França/Reprodução

Quem não está acostumado a performances historicamente informadas não precisa se assustar com os nomes dos instrumentos, já que a função de cada um deles é bem clara —com seus alaúdes grandes e graves, Scarinci conduz a linha de baixo, enquanto Burmester cuida dos acordes e frases mais agudas, os quais, por sua vez, dialogam com a voz solista de Marília Vargas.

Ao contrário da sofrência sertaneja —e mesmo dos lamentos escancarados do blues—, as canções de amor do século 17 falam de dor e morte sem se derramar. São mais próximas da afetividade nobre e contida do samba tradicional, como “Jurara Não Mais Amar”, de La Barre, que faz lembrar Cartola, Ismael Silva ou Paulinho da Viola, ou, como em “Vossos Desprezos”, de Lambert, remetem a sonetos de Camões —“se nos meus males/ encontro tantos encantos,/ morreria de prazer/ se fosse mais feliz”.

Achamos nesse repertório um elo importante que conduz da antiga polifonia dos flamengos e italianos —ainda escrita sobre as escalas medievais—, e a representação cênica dos afetos, presente no moderno teatro de ópera, com sua melodia solista acompanhada por blocos de acordes.

Transitando entre a renascença e o barroco, as árias não se restringiram aos limites da corte real francesa, mas circularam e foram apropriadas por idiomas e localidades. Há no disco quatro canções com letra em espanhol.

Igualmente, estão nas árias de corte todos os elementos vocais e instrumentais que Jean-Baptiste Lully usaria, pouco tempo depois, em suas óperas trágicas, apresentadas no Palácio de Versalhes já sob o reinado de Luís 14.

“Eu morro distante de ti quatro mortes juntas”, diz a letra de “Os Olhos Banhados em Lágrimas”, de Richard. “De pavor, de pesar, de desejo e de amor.” Tal como na “Ética” do filósofo Espinosa, a representação define, enumera, decompõe e busca relações causais para mapear os afetos humanos.

A bela voz de Marília Vargas parece encontrar na formação camerística intimista um espaço privilegiado, revelador de sutilezas. É surpreendente como seu canto consegue sustentar o mesmo tipo de polarização observado nos movimentos alternados que, sem o uso de unhas, Scarinci e Burmester usam —tal como pede a técnica de execução da época— para dedilhar as cordas duplas de seus alaúdes e guitarras para cima e para baixo.

Ela controla a ressonância e o brilho da voz e ornamenta a melodia com refinamento, o que magnifica a emoção e o sentido dos versos. É uma música simples, fácil de ouvir, e a escuta se beneficia muito da consulta ao encarte, que não apenas traz informações sobre o repertório e os compositores, mas apresenta todas as letras das árias —tanto no francês ou espanhol, como em tradução para o português.

Aliás, já passou da hora de os streamings oferecerem, junto com os arquivos de áudio, os textos, ilustrações do encarte e ficha técnica dos álbuns, de modo a permitir que a nossa fruição musical se aproxime minimamente das experiências correntes desde os anos 1960 e 1970 até recentemente.

Essa contextualização se torna mais importante quando a proposta artística é original e foge de padrões. Afinal, a liberdade dos espíritos pode estar também nas sonoridades vivas de séculos passados.

Gravura mostra um homem no século 17 tocando o alaúde
'Jovem Lorde Toca o Alaúde', gravura de Abraham Bosse do século 17 - RMN-Grand Palais/Adrien Didierjean/Reprodução
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