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Cinema mostra de cinema

Hamaguchi cria uma das maiores cenas eróticas da história do cinema

'Roda do Destino', que o diretor-sensação exibe na Mostra de SP, mostra como a tensão é próxima do tesão

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Roda do Destino

  • Quando Próximas sessões presenciais: Cinesesc, dia 26, às 17h10; Reserva Cultural, dia 28, às 15h40; Espaço Itaú Frei Caneca, dia 31, às 13h30
  • Elenco Kotone Furukawa, Kiyohiko Shibukawa, Katsuki Mori, Fusako Urabe, Aoba Kawai, Ayumu Nakajima
  • Produção Japão, 2021
  • Direção Ryusuke Hamaguchi
  • Link: https://45.mostra.org/filmes/a-roda-do-destino

O cineasta Ryusuke Hamaguchi é a grande sensação do cinema japonês atual. Só neste ano, teve dois filmes exibidos e premiados nos festivais de Berlim e de Cannes.

"Roda do Destino" abocanhou o Grande Prêmio do Júri na mostra alemã, e seus três episódios são mais do que suficientes para o público entender que a badalação é merecida.

Cena de 'Roda do Destino', de Ryusuke Hamaguchi
Cena de 'Roda do Destino', de Ryusuke Hamaguchi - Divulgação

O filme parte de três premissas envolvendo noções de sina e coincidência, na vida de diferentes mulheres em Tóquio. E todas são excelentes achados, pois fica nítido que vêm de uma grande mente imaginativa —hoje, talvez só Hong Sang-soo tenha o mesmo impulso criador. Mas o resultado seria outro nas mãos do sul-coreano, que provavelmente faria um longa distinto a partir de cada premissa —e todos, ainda que imperfeitos, seriam fascinantes.

Já Hamaguchi é um diretor menos intuitivo e com um senso de controle mais marcado, então limita suas histórias ao tamanho exato que elas deveriam ter —não parece sobrar ou faltar um segundo a nenhum dos episódios.

O primeiro mostra um triângulo amoroso numa trama repleta de acasos. A melhor cena se dá em um táxi, quando uma jovem detalha à amiga o flerte que teve com um rapaz. As falas têm uma sensualidade delicada, romântica, mas a forma como Hamaguchi encena essa conversa eleva a sequência a um outro nível de carga sexual.

Pelo vidro do fundo, vemos que o carro adentra túneis e penetra entradas de viadutos, e embora esse tipo de metáfora visual possa parecer óbvia ou até vulgar em outros filmes, aqui ela de fato amplia o potencial erótico da cena. Ainda que de soslaio, Tóquio nunca foi tão sexy.

Cena de 'Roda do Destino', de Ryusuke Hamaguchi
Cena de 'Roda do Destino', de Ryusuke Hamaguchi - Divulgação

No episódio seguinte, sobre dois estudantes que armam uma cilada para um professor, o talento de Hamaguchi é ainda mais espantoso. A aluna tenta seduzir o mestre, lendo em voz alta o trecho mais lascivo de um romance escrito por ele. As frases são ostensivamente pornográficas, mas o real erotismo da cena vem justamente da maneira contida em que os dois personagens interagem.

Afinal, há vários níveis de apreensão em jogo —as inerentes a um flerte atrevido, a de um golpe que pode ser desmascarado, a de uma porta que precisa ficar aberta. Hamaguchi mostra o quanto tensão se assemelha a tesão. É, desde já, uma das grandes cenas eróticas sem nudez da história do cinema.

O conteúdo da conversa e a técnica de encenação revelam uma infinidade de questões subjacentes envolvendo relações hierárquicas, sentimento de inadequação no mundo, descoberta de novas fontes de prazer sexual.

De repente, em pouco mais de 20 minutos, o professor e a aluna já se tornaram personagens de uma inacreditável solidez. O espectador começa a achar que talvez tenha sido um erro deixar esse capítulo para o meio, porque vai ser difícil conseguir manter o mesmo nível de brilhantismo no resto do filme.

Mas eis que chega o terceiro episódio, e o que parecia impossível acontece. Em alguns aspectos, ele consegue a proeza de ser ainda melhor do que o segundo. Narra o encontro entre duas mulheres que se reconhecem numa escada rolante e travam uma longa conversa, sobre a qual é melhor não revelar muito, para evitar spoilers.

É marcante a franqueza das personagens de Hamaguchi. Elas são de uma invejável honestidade consigo próprias e com seus interlocutores, mesmo quando pretendem inicialmente ludibriar os outros. Não escondem, inclusive, que são pessoas cheia de dúvidas e de áreas cinzentas. Deixam as verdades brotar para fora de si, e existe nessa atitude um elemento de autoterapia, talvez catarse.

Hamaguchi também é franco com o público —desta vez, corrige seu erro do longa anterior, "Asako I e II", e não prolonga situações desnecessariamente. É como se o cineasta tivesse tomado ciência de suas próprias limitações e, em seu jogo limpo com o espectador, só leva o filme até onde ele deve ir.

Há algo de indecoroso em atacar um diretor pela excelência do próprio trabalho, mas aqui é inevitável. O maior problema de "Roda do Destino" está na quase perfeição de seus episódios.

Entre cada capítulo, há, sim, espelhamentos e mesmo fricções possíveis, mas a verdade é que qualquer tentativa de diálogo entre eles sempre resulta no empobrecimento do que cada um deles trazia de melhor, de mais específico, quando tomado isoladamente. Sozinhos, expandem a mente do espectador, enquanto, acareados, estreitam e direcionam nossos pensamentos.

Num livro de contos, é sempre possível parar quando se termina de ler um deles, mas num longa de episódios existe necessariamente um fluxo a ser percorrido —e, assim, relações a serem estabelecidas entre as partes.

Em "Roda do Destino", várias questões levantadas em cada um dos trechos terminam jogadas ao vento, sacrificadas pelo que traz o episódio a seguir —ou pelo conceito geral de "destino", que de repente se torna embaraçosamente pequeno diante de outras questões que os capítulos sugerem. O longa se autossabota.

É a maldição do formato. Filmes em episódios ou nunca constituem uma obra verdadeiramente homogênea ou fracassam em articular os capítulos em sua completude. Grandes mestres do passado, como Rossellini, Ophüls e Kurosawa, já toparam com essa dificuldade.

Hamaguchi, um mestre do presente, apenas cumpre o que lhe reservava a sina. Ironicamente, num filme sobre o destino.

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