Em “Apoteose de Rousseau”, obra para grande orquestra escrita em 2015, o compositor brasileiro Jorge Antunes dialoga, de forma bem-humorada, com o célebre ensaio teórico “Apoteose de Rameau”, publicado por Henri Pousseur em 1968. Ambos se referem à querela travada no século 18 entre o compositor francês Jean-Philippe Rameau e o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau.
O tema surge renovado com o lançamento, inédito em língua portuguesa, do “Dicionário de Música” de Rousseau.
A edição —que conta com tradução, apresentação e notas minuciosas de Fabio Stieltjes Yasoshima— traz uma seleção criteriosa de 33 verbetes do original e pode ser lida como texto corrido, inclusive por não músicos, pois a sequência amplifica temas caros ao pensamento do autor e a seu contexto histórico.
Rousseau foi compositor amador e chegou a apresentar, sem sucesso, para a Academia de Ciências de Paris um projeto de simplificação da notação musical. Publicado em 1767, o “Dicionário de Música” teve origem em verbetes escritos para a “Encyclopédie” de Diderot e d’Alembert.
Insatisfeito com o resultado, Rousseau trabalhou em correções e acréscimos por mais de dez anos, tendo em vista a publicação de seu próprio dicionário musical. A obra enseja pontes com o “Ensaio Sobre a Origem das Línguas”, que foi esboçado no mesmo período.
A seleção de verbetes permite acompanhar o pensamento crítico-musical de Rousseau no que ele tem de mais característico, a saber, a defesa da música italiana sobre a francesa e a proeminência da melodia sobre o pensamento harmônico —o que se materializa em sua rivalidade com Rameau.
Em linhas gerais, a polêmica musical, também um conflito geracional, entre Rameau e Rousseau pode ser entendida como a adoção, por cada um deles, de posições opostas sobre o sentido das relações entre arte humana e natureza.
Autor de óperas trágicas sobre temas da mitologia grega, célebre por seu “Tratado de Harmonia”, de 1722, Rameau pretende derivar os parâmetros musicais da realidade acústico-matemática sonora, cujo princípio estruturante está nos acordes, na verticalidade dos sons simultâneos.
Rousseau, por seu turno, associa natureza e sensibilidade, que se manifesta na espontaneidade do canto melódico, especialmente nas árias da ópera cômica italiana —“assim como a língua italiana é mais musical que a francesa, a fala se afasta menos do canto”.
Vivendo o cerne da “era da sensibilidade”, o filósofo suíço rejeita os barroquismos do antecessor —“os deuses foram expulsos de cena quando nela [na ópera] se soube representar homens”.
Entre os verbetes mais desenvolvidos da seleção estão “gosto”, “música”, “ópera”, “som” e “voz”. Rousseau menciona dezenas de músicos, filósofos, cientistas e tratadistas, em um arco temporal que vai da Antiguidade greco-latina a seus contemporâneos.
É interessante constatar como a imensa maioria dos compositores citados por Rousseau como atuantes e reconhecidos em sua época passaria a ter pouca ou nenhuma presença no cenário musical nos séculos seguintes. Afinal, quantos conhecem obras de La Garde, Lattaignant, Perez, Jomelli, Durante, Leo, Hesse, Terradeglias, Galuppi?
Seu pensamento é sempre exposto com independência, como na oposição à prática de se utilizar cantores castrados na ópera — “na Itália há pais bárbaros e cruéis que, ao sacrificarem a natureza à fortuna, entregam seus filhos a essa operação para o prazer de pessoas que ousam procurar o canto desses infelizes”.
Na composição de Antunes, uma linha melódica aguda de flautim e piano teima em se sobrepor às histerias harmônicas. Essa ironia fina se acha também no estilo de escrita de Rousseau —“se não tens delírio nem arrebatamento, ousas perguntar o que é o gênio? Que te importa conhecê-lo? Não saberia senti-lo: faz música francesa”.
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