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Editoras conservadoras dos EUA lucram com obras que negam racismo estrutural

Após sucesso de livros antirracistas, autores de direita começam a conquistar público com teorias discordantes

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Elizabeth A. Harris
The New York Times

O livro “How to Be an Antiracist”, ou como ser um antirracista, de Ibraim X. Kendi, vendeu quase 2 milhões de cópias em papel, como livro eletrônico e como audiolivro, desde seu lançamento dois anos atrás, de acordo com sua editora, um resultado de vendas espantoso e mais comumente associado a livros sobre Donald Trump do que a títulos que tratam de questões sociais difíceis.

Mas outros livros que estão sendo publicados nos Estados Unidos vêm de uma perspectiva muito diferente, entre os quais “I Can’t Breathe: How a Racial Hoax Is Killing America”, ou não consigo respirar, como uma farsa racial está matando a América, “Race Crazy: BLM, 1619, and the Progressive Racism Movement” e “Blackout: How Black America Can Make Its Second Escape from the Democrat Plantation”, ou como a América negra pode escapar da plantação democrata pela segunda vez.

Desde o assassinato de George Floyd, no ano passado, livros sobre raça e racismo vêm impulsionando o setor editorial, de maneira tanto surpreendente quanto lucrativa. Mas, agora que o diálogo nacional sobre racismo se transformou em batalha feroz, editoras conservadoras estão vendo ouro em títulos que servem à causa da reação.

“Blackout”, de Candace Owens, uma personalidade de mídia direitista, vendeu 480 mil cópias em diversos formatos desde que foi lançado no final do ano passado pelo selo editorial Threshold Editions, da Simon & Schuster. “American Marxism”, do escritor Mark Lewin, um autor de sucesso, que dedica um capítulo à teoria crítica da raça, vendeu 400 mil cópias em sua semana de lançamento.

“Fault Lines: The Social Justice Movement and Evangelicalism’s Looming Catastrophe”, ou o movimento de justiça social e a catástrofe iminente do evangelicalismo, de Voddie Baucham Jr., vendeu 90 mil cópias desde que foi lançado no segundo trimestre pela Salem Books, um selo editorial cristão da Regnery Publishing.

O sucesso do livro de Baucham “foi uma grande surpresa para mim”, disse Thomas Spence, presidente e editor-chefe da Regnery. “Eu nem desconfiava que isso aconteceria. Mas o livro encontrou um público.” Esperando aproveitar esse tipo de interesse, a Salem Books recentemente publicou “Christianity and Wokeness,” de Owen Strachan, que descreve o termo “wokeness”, em sua capa, como “uma mistura potente de racismo, paganismo e lamúria” que “encoraja a ‘parcialidade’ e solapa o trabalho unificador do Espírito Santo”.

No final deste ano, a Regnery vai lançar “I Can’t Breathe”, de David Horowitz, que examina 26 incidentes descritos pela mídia como ataques de base racial, e argumenta que, excetuados dois dos casos, todos os demais foram caracterizados indevidamente.

“As pessoas estão estudando essas questões raciais de maneiras completamente diferentes”, disse Spence. “Creio que o lado conservador está começando a reagir, tentando reafirmar sua visão sobre os Estados Unidos e a questão racial nos Estados Unidos. Entramos no jogo um pouco tarde, mas estamos chegando lá.”

Neste ano, veículos de direita como a rede de TV Fox News começaram a se pronunciar agressivamente sobre a teoria crítica da raça, um enquadramento acadêmico que examina o papel da lei e outras instituições na perpetuação da desigualdade racial, em lugar de se concentrar no preconceito individual.

Os que a criticam a definem como um sistema de crença divisivo que retrata ser branco como inerentemente ruim e descreve o país de forma injusta como irrecuperavelmente racista. Os acadêmicos que abraçam a teoria crítica da raça dizem que o termo foi intencionalmente descaracterizado e usado de maneira completamente incorreta.

A questão despertou uma tempestade cultural num momento no qual o Partido Republicano planeja se concentrar em questões de guerra cultural em sua campanha para retomar o controle da Câmara dos Deputados e do Senado nas eleições legislativas de 2022.

Pelo menos 21 estados debateram ou aprovaram leis que restringem a maneira pela qual as escolas podem tratar de questões raciais ou racismo, às vezes mencionando especificamente a teoria crítica da raça, de acordo com a Comissão de Educação nos Estados, que acompanha questões de política educacional nos Estados Unidos.

Numa atmosfera como essa, muitos livros que exploram questões de raça e racismo foram rotulados incorretamente como representativos da teoria crítica da raça. Numa reunião de um conselho escolar em Long Island, no mês passado, alguns pais se opuseram ao livro “Brown Girl Dreaming”, de Jacqueline Woodson. Livro de memórias escrito em verso livre e destinado a leitores jovens, o trabalho retrata o crescimento de uma menina negra que se torna escritora. E, como disse Woodson em entrevista, nada tem a ver com a teoria crítica da raça.

A questão, ela disse, “não é a teoria crítica da raça, é a raça”.

Em junho de 2020, pouco depois do assassinato de Floyd, as vendas de livros sobre raça e racismo explodiram. Títulos enquadrados na categoria “discriminação”, que inclui primariamente livros sobre raça, venderam 850 mil cópias naquele mês, de acordo com a NPD BookScan, que acompanha as vendas da maior parte dos livros em papel, nos Estados Unidos. No mês de junho anterior, o total havia sido de 34 mil exemplares.

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A categoria vem mantendo a força desde então. Nos cinco primeiros meses de 2021, livros sobre discriminação venderam três vezes mais do que no período um ano atrás, de acordo com a BookScan, e chegaram a 90 mil cópias em junho. As vendas de livros sobre os direitos civis mais que quadruplicaram no mesmo período de cinco meses, ante o ano anterior.

Mesmo títulos publicados anos atrás vêm se saindo incomumente bem. Um livro de 1996, “Critical Race Theory: The Key Writings That Formed the Movement”, ou teoria crítica da raça, os escritos-chave que formaram o movimento, editado pela pesquisadora judicial Kimberlé Crenshaw, viu suas vendas mais que triplicarem ante os totais de 2019 e 2020, de acordo com a The New Press, a editora do trabalho. E as vendas até agora neste ano foram duas vezes mais altas do que o total do ano passado.

Continuam a existir muito mais livros explorando as questões raciais dos Estados Unidos do ponto de vista da esquerda do que do ponto de vista da direita. O interesse dos progressistas vem crescendo há anos, à medida que a atenção nacional passou a se concentrar mais e mais em questões de racismo e de disparidade racial. Mas o setor editorial age lentamente, e a indignação generalizada quanto à teoria crítica da raça é coisa relativamente nova.

“Pode ser que ainda não existam muitos livros nessa categoria, mas estamos empolgados com ela”, disse Spence. “Para nós, ela tem grande importância. Há muito tempo não tínhamos uma reação tão visceral de nossa audiência alvo”.

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David Bernstein, editor da conservadora Bombardier Books, em seu escritório em Manhattan - Vincent Tullo/The New York Times

Na metade do ano passado, a Bombardier Books lançou um selo editorial chamado Emancipation Books, que se descreve como “dedicado a publicar autores não brancos cujas opiniões não se enquadrem à conformidade ideológica de nossa era”.

O selo vai lançar diversos livros sobre raça e racismo no final deste ano, entre os quais “Race Crazy: BLM, 1619, and the Progressive Racism Movement”, de Charles Love, e “Red, White, and Black: Rescuing American History from Revisionists and Race Hustlers”, ou vermelho, branco e preto, resgatando a história americana de revisores e traficantes da raça, uma antologia que a editora descreve como correção para o "1619 Project" do The New York Times.

O surgimento desses livros reflete uma cisão mais ampla e cada vez mais profunda no negócio editorial, sob a qual um pequeno número de selos editoriais e editoras independentes conservadores atende a um grupo grande e faminto de leitores da direita.

Embora as equipes das grandes editoras americanas há muito tempo tenham inclinações esquerdistas, essas empresas tradicionalmente publicavam livros de todo o espectro político, e o mercado conservador foi lucrativo para elas. Três dos dez títulos mais vendido na lista de best-sellers de não ficção do The New York Times esta semana são obras conservadoras. Muitos desses livros são publicados por selos editoriais reservados a autores conservadores e comandados por equipes separadas.

Mas, nos últimos anos, muitas vezes em reação a protestos de funcionários das editoras, isso começou a mudar, e as grandes editoras foram abandonando a publicação dos autores conservadores mais controversos.

Ao mesmo tempo, os conservadores começaram a criar um ecossistema editorial próprio, em lugar de operar dentro dos selos editoriais especializados das editoras convencionais. Donald Trump Jr. publicou seu primeiro livro, “Triggered”, pelo selo editorial Center Street, da Hachette, mas no ano passado escolheu publicar seu segundo livro, “Liberal Privilege”, como obra independente.

Até agora, as editoras conservadoras independentes em geral não conseguem competir com as casas mais convencionais em termos dos adiantamentos oferecidos a autores. O que oferecem, em lugar disso, é às vezes um sistema de lucro compartilhado e uma garantia de que um livro não será cancelado por causa de protestos no Twitter ou da parte dos empregados da editora. E os editores dessas casas se posicionam como ansiosos para atender aos autores conservadores.

“Não só todo mundo aqui está entusiasmado quanto aos livros —todo mundo que trabalha aqui gosta dos livros e gosta dos autores—, como também conhecemos o mercado”, disse Spence, editor-chefe da Regnery. “Sabemos como vender livros conservadores aos conservadores.”

Há algumas semanas, antigos executivos da Simon & Schuster e Hachette criaram a All Seasons Press, uma editora conservadora que se descreve como “acolhedora para autores que estejam sendo atacados, intimidados, banidos da mídia social e, em certos casos, completamente rejeitados pelas editoras politicamente corretas”.

E uma empresa de relações públicas de Washington chamada Athos criou uma agência literária para representar conservadores como Scott Atlas, antigo assessor de Donald Trump quanto ao coronavírus, e Christopher Rufo, pesquisador sênior do Manhattan Institute e diretor da iniciativa daquela organização quanto à teoria crítica da raça, que recentemente vendeu um livro sobre o tema à editora Broadside. Rufo recebe crédito por despertar a indignação dos conservadores mais convencionais com relação à teoria crítica da raça.

“Para ser honesto, acontece a mesma coisa que costuma acontecer com a divisão entre esquerda e direita”, disse David Bernstein, editor-chefe da Bombardier Books e Emancipation Books. “Todos sabemos estar publicando livros cada vez mais divisivos, que não têm audiência do outro lado; todos os envolvidos no mercado de livros políticos sabem disso.”

“É aquela velha questão do ovo ou a galinha”, ele prosseguiu. “Estamos criando a divisão ou refletindo a divisão?”

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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