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Músicos afegãos temem que Talibã silencie escola pioneira de instrumentos

Grupo que retomou controle do país tem histórico de suprimir música que não seja religiosa

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Javier C. Hernández
The New York Times

Por mais de uma década, o Instituto Nacional de Música do Afeganistão serviu como símbolo da mudança de identidade do país.

A escola treinou centenas de jovens artistas, muitos deles órfãos e vendedores de rua, em tradições artísticas que o Talibã havia proscrito no passado. O instituto formou uma orquestra feminina que se apresentou em muitos lugares, no país e no exterior.

Sala do Instituto Nacional de Música do Afeganistão, em Cabul - James Edgar - 14.set.2021/AFP

Mas, nos últimos tempos, com o Talibã consolidando seu controle sobre o Afeganistão de novo, diversos professores e estudantes dizem temer que o movimento, que tem um histórico de atacar líderes da escola, busque punir pessoas associadas a ela e suas famílias.

Alguns disseram estar preocupados com o possível fechamento da escola e com a possibilidade de que não sejam mais autorizados a tocar. Diversas alunas do instituto disseram que estavam evitando sair de casa desde que a capital do país foi conquistada.

“É um pesadelo”, disse Ahmad Naser Sarmast, o diretor da escola, em entrevista por telefone de Melbourne, na Austrália, onde passa por um tratamento médico.

Ahmad Sarmast, fundador e diretor do Instituto Nacional de Música do Afeganistão, em Melbourne, na Austrália - William West - 5.out.2021/AFP

O Talibã proibiu a maior parte das formas de música em seu período anterior de governo no Afeganistão, entre 1996 e 2001. Desta vez, o movimento prometeu uma abordagem mais tolerante, disse que não executaria represálias contra antigos inimigos e que as mulheres seriam autorizadas a trabalhar e estudar “nos limites da lei islâmica”.

Mas o histórico de violência do Talibã contra artistas e sua intolerância generalizada contra música que não tenha significado religioso semeou dúvidas entre muitos instrumentistas. “Minha preocupação é que o povo do Afeganistão se veja privado de música”, disse Sarmast. “Haverá uma tentativa de silenciar a nação.”

Em 2010, Sarmast, um estudioso da música do Afeganistão, que se formou na Austrália e toca trompete e piano, abriu a escola, que tem mais de 400 alunos e funcionários, com o apoio do governo dos Estados Unidos. Era uma raridade, uma instituição educacional mista dedicada a ensinar música, tanto do Afeganistão quanto do Ocidente.

Os músicos da escola foram convidados a se apresentar em muitos dos palcos mais renomados do planeta, entre os quais o Carnegie Hall, em Nova York. Eles tocavam música clássica do Ocidente, além de música e instrumentos tradicionais do Afeganistão, como o “rubab”, semelhante ao alaúde, um dos prediletos no país.

A escola enfatizava o apoio às mulheres jovens, que respondiam por um terço dos alunos. A orquestra feminina da escola, chamada Zohra, foi fundada em 2015 e conquistou muitos elogios. Muitas das instrumentistas eram as primeiras mulheres de suas famílias a receber treinamento formal.

Para simbolizar os modos modernos da instituição, as mulheres não eram obrigadas a ocultar os cabelos com lenços na sede da escola em Cabul. O hábito da escola de desafiar as tradições fez dela um alvo. Sarmast foi ferido quando um atentado suicida do Talibã foi realizado durante um evento da escola. O Talibã tentou novos ataques nos anos seguintes, mas essas tentativas foram evitadas, segundo o diretor.

Agora, as mulheres dizem temer o retorno do passado repressivo, quando o Talibã proibiu meninas de irem à escola e mulheres de saírem de casa sem guardiões masculinos.

Diversas estudantes —cujos nomes não serão citados porque elas temem retaliação— disseram sentir que seu sonho de se tornarem instrumentistas profissionais se desintegrarão. Elas temem ser proibidas de voltar a tocar música pelo resto de suas vidas, mesmo como hobby.

Enquanto o Talibã conquistava o país rapidamente, a rede de simpatizantes internacionais da escola tentou ajudar e levantar dinheiro para melhorar a segurança na sede, o que inclui instalar um portão armado e muros.

Mas agora não está certo nem que a escola será autorizada a continuar operando sob o Talibã. Os aeroportos estão caóticos e o acesso a eles parece impossível, nos últimos dias, mesmo para as pessoas dotadas de documentos de viagem.

O Talibã controla as ruas e, ainda que seus representes afirmem que estão dispersando as multidões no aeroporto para conter a ordem, existem informações de que seus militantes estão usando a força para impedir que pessoas deixem o país.

O Departamento de Estado americano afirmou em comunicado que está trabalhando para tirar os cidadãos americanos, funcionários locais da embaixada e cidadãos afegãos em risco do país, mas a superlotação dos aeroportos torna isso mais difícil. O departamento anunciou estar priorizando as mulheres e meninas do Afeganistão, os defensores dos direitos humanos e os jornalistas, entre outros.

Na década de 1990, o Talibã permitia cânticos religiosos, mas proibiu outras formas de música, porque eram vistas como distração dos estudos islâmicos e capazes de encorajar comportamento impuro. Dirigentes do Talibã ordenaram a destruição de instrumentos musicais e fitas cassete.

William Maley, professor emérito da Universidade Nacional Australiana e estudioso do Afeganistão, disse que estava preocupado com as informações de que o Talibã havia buscado limitar a difusão de música popular em certas áreas do país.

“Na década de 1990, o Talibã era extremamente hostil a qualquer forma de música, exceto cânticos religiosos, e as pessoas tiveram de esconder seus instrumentos e só podiam tocar em segredo”, disse Maley. “Eu não encararia a situação atual com otimismo.”

Em meio ao caos em Cabul, estudantes, professores e ex-alunos da escola trocam mensagens freneticamente em grupos de chat. Eles lamentaram a possibilidade de ter de esconder seus instrumentos ou de os deixar aos cuidados de terceiros, caso precisem fugir.

William Harvey, que lecionou violino e regeu a orquestra da escola de 2010 a 2014, disse que se sente desesperado ao pensar que seus ex-alunos agora talvez estejam em perigo por terem buscado realizar seus sonhos. Mas ele disse que ainda assim a escola é uma inspiração para artistas e público de todo o mundo.

“E temos uma tremenda responsabilidade para com aqueles estudantes”, disse Harvey, hoje primeiro violinista da Orquesta Sinfônica Nacional do México. “Eles precisam voltar a erguer suas vozes.”

Tradução de Clara Allain

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