Entenda como o Talibã ameaça o patrimônio cultural do Afeganistão

Diversos artefatos correm risco de pilhagem e destruição sob um novo regime da facção

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Washington

A retomada de Cabul pelo Talibã no último dia 15 ressuscitou os pesadelos dos afegãos, que ainda se lembram de seus tormentos sob o domínio da facção radical de 1996 a 2001. Um desses horrores, entre tantos, foi a destruição de seu patrimônio cultural —um risco que volta a se impor.

A demolição dos Budas de Bamiã, em março de 2001, meses antes da invasão americana que expulsou o Talibã, é um dos símbolos da barbárie travada por essa facção contra a história do Afeganistão. Os budas haviam sido esculpidos por volta do século seis na montanha, em um trecho da Rota da Seda. O Talibã, cuja leitura radical do islã condena a idolatria, explodiu as estátuas.

O receio é de que, uma vez de volta ao poder, a facção despedace ainda mais a herança cultural do Afeganistão. O Talibã, no entanto, tem tentado convencer o mundo de que mudou nessas últimas duas décadas, que já não adota as mesmas visões fundamentalistas.

Foto de 1997 mostra os Budas de Bamiã, no Afeganistão
Foto de 1997 mostra os Budas de Bamiã, no Afeganistão - Jean-Claude Chapon/AFP

Em fevereiro, o grupo emitiu um comunicado prometendo proteger, monitorar e preservar as relíquias do país. Depois de tomar Cabul, os militantes também prometeram ao diretor do Museu Nacional do Afeganistão —uma referência mundial de acervo da Antiguidade— que não vão pilhar seus artefatos. Como o anúncio de que os fundamentalistas vão respeitar o direito das mulheres, que foram apedrejadas ali até a morte nos anos 1990, essa promessa não inspira muita confiança dentro e fora do país.

Ainda que o Talibã cumpra o prometido em Cabul, a situação pode ser diferente nas zonas rurais, longe das câmeras da imprensa internacional. Há também divergências entre a liderança do grupo e seus militantes, alguns dos quais não estão necessariamente interessados em projetar uma imagem de moderação para manter o acesso a canais diplomáticos e financeiros.

O Icom, o conselho internacional de museus, na sigla em inglês, afirma que está acompanhando de perto a situação no país. Nas redes sociais, o órgão circulou uma longa lista de objetos que correm risco de pilhagem e destruição sob um regime radical do Talibã. Entre eles, vasos de cerâmica, estatuetas de calcita, painéis de marfim, jarros de cobre, moedas de bronze e relicários de ouro. São registros históricos, tangíveis, dos séculos passados nessa riquíssima região da Ásia central.

A pilhagem não é um risco que existe apenas sob o Talibã. Essa é uma realidade no Afeganistão há décadas, diz Bastien Varoutsikos, arqueólogo especializado no país. Artefatos são roubados e contrabandeados para suprir as demandas da Europa, dos Estados Unidos e do Golfo Pérsico. Nos últimos 30 anos, o museu já perdeu grande parte de sua coleção arqueológica e etnográfica. As atividades do Talibã, além do caos e da violência que a facção semeia, podem agravar o cenário.

A instabilidade política ameaça também o patrimônio intangível —algo com que Varoutsikos trabalha há tempos no Afeganistão. São práticas culturais como a tradição de recitar poemas ao som de um instrumento de corda feito de madeira de amoreira. Histórias folclóricas, canções populares e celebrações religiosas são também patrimônios valiosos, apesar de muitas vezes serem preteridos, com mais atenção sendo dada ao patrimônio material.

“Muitas tradições culturais foram interrompidas com a fuga dos afegãos”, diz Varoutsikos. Práticas como a música e a dança dependem de redes sociais que já não existem, com todo o êxodo causado pelo Talibã.

Foi o que aconteceu entre 1996 e 2001, quando o Talibã dominou o país. Essa facção, avessa à música fora de contextos religiosos específicos, proibiu que afegãos tocassem seus instrumentos musicais. Muitos dos artesãos se refugiaram, portanto, em países como o Paquistão e o Irã, conta Varoutsikos.

Alguns continuaram seu trabalho ali. Mas algo se perdeu —por exemplo, com o uso de diferentes madeiras, que soam diferente, e com a impossibilidade de transmitir conhecimento oral. A cultura precisa ser praticada para continuar a existir, diz Varoutsikos. Do contrário, some.

O trabalho de conservação, feito por gente como ele, por vezes esbarra na ressalva de quem insiste em que toda a atenção internacional e todo o capital deveriam ser investidos na assistência humanitária —coisas como campos de refugiados e comida. O arqueólogo discorda desse tipo de visão que divide o mundo entre duas coisas.

Ele aponta para a conexão entre a herança cultural e as pessoas que a praticam. São pessoas, também, que erguem os monumentos e os visitam. Varoutsikos diz, ademais, que as tradições de um povo estão ligadas ao seu bem-estar e à preservação de sua história e de sua identidade. “A divisão entre pessoas e pedras é irrelevante.”

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