Descrição de chapéu Livros Flip

O paraíso não é no céu, mas ao lado de uma árvore, diz Paulina Chiziane na Flip

Vencedora do Camões dividiu mesa com Itamar Vieira Junior em dia que também teve debate sobre curas indígenas

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Nathan Fernandes João Perassolo
Ubatuba (SP) e São Paulo

"Nós, como autores, estamos dando um testemunho do nosso tempo e espaço. Viver neste espaço, seja no Brasil ou em Moçambique é viver num espaço onde a natureza faz parte da nossa vida de uma maneira muito intensa."

A fala do escritor Itamar Vieira Junior resume o espírito do segundo debate do terceiro dia de Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Colunista deste jornal e autor do fenômeno "Torto Arado", ele dividiu a mesa com a moçambicana Paulina Chiziane, vencedora mais recente do prêmio Camões, a mais importante distinção literária em língua portuguesa.

Chiziane, que afirmou escrever embaixo de uma árvore, as definiu como os "seres mais perfeitos" na cultura de Moçambique. É ao pé delas que se reza, segundo a autora, pedindo ajuda aos espíritos para elevarem as orações até o transcendente. É por isso que ela diz crer que o paraíso é na terra, ao lado de uma árvore, e não nas estrelas, pois lá "não existe nem árvore, nem sombra, nem um pouco de areia".

Vieira conectou o verde com o candomblé, que não existe sem as espécies vegetais —"sem folha não há orixá". O autor afirmou que não havia se dado conta de que seu livro tinha tantas referências a plantas até ver a edição italiana de "Torto Arado", que traz um glossário com as espécies das plantas citadas na obra.

O autor comentou que, segundo sua cosmovisão de mundo, as árvores fazem parte de tudo. Acrescentou que viver em Salvador, onde ainda se veem gameleiras nas ruas da cidade apesar de toda a urbanização, fez com que ele passasse a enxergar as árvores como irmãs "nessa trajetória épica que é a vida humana".

Para Chiziane, a natureza existe sem o homem, mas o oposto não é verdadeiro. "No dia em que morrer a ultima árvore, morrerá o último pássaro e o último ser humano."

Mais cedo, os debatedores da mesa "Plantas e Cura" defenderam que a inteligência não é exclusividade de cérebros humanos —todos os sistemas vivos, segundo eles, podem processar informação, inclusive as plantas.

O tema orientou a discussão entre a pesquisadora australiana Monica Gagliano, que estuda a inteligência das plantas, e o antropólogo João Paulo Lima Barreto, também um dos curadores da Flip. A educadora popular e pesquisadora Silvanete Lerman, que também participaria do encontro, teve um contratempo e não pôde comparecer.

homem indígena de camisa social branca
O antropólogo João Paulo Lima Barreto, curador da Flip 2021 que também participou de mesa nesta segunda - Divulgação

Para Barreto, membro do povo tukano, do noroeste da Amazônia, falar das florestas é falar da noção de casa, algo diretamente relacionado à saúde e à qualidade de vida.

Graduado em filosofia e doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Amazonas, o pesquisador também é um dos criadores do Centro de Medicina Indígena, que busca integrar os saberes ocidentais com os dos povos tradicionais da região.

Na conversa, ele falou sobre a particularidade da noção de cura dos tukano. "Diferentemente do farmacêutico, por exemplo, nós não precisamos fazer uma manipulação química das plantas, nós as manipulamos através das palavras. Portanto, a palavra não é algo invisível. Para nós, palavra é bisturi, aquilo que corta, que limpa, que cura. O Centro de Medicina Indígena está inserido dentro dessa lógica."

Considerada pioneira em um campo de pesquisa conhecido como bioacústica das plantas, a australiana afirmou ter encontrado ecos de suas pesquisas nas falas de Barreto. Abordou ainda a noção de plantas como entidades professoras, uma ideia também presente em diversas cosmologias indígenas.

Para Gagliano, a vegetação é capaz, inclusive, de se comunicar de forma literal. Ela disse ter recebido, numa viagem ao Peru, instruções de uma árvore para realizar suas pesquisas com ervilhas e não com girassóis, como pensava em fazer —uma decisão que se mostrou correta quando conseguiu comprovar que as ervilhas conseguiam associar a ventilação à chegada da luz, da mesma forma que o cão de Pavlov associava as badaladas do sino à chegada do jantar.

Os debatedores se mostraram cientes do fato de que, em uma sociedade cartesiana, alegações baseadas em experiências subjetivas, e não em evidências científicas, podem ser facilmente desacreditadas. Por isso, propuseram uma nova forma de diálogo.

"Nosso medo é que os outros que não estão no nosso mundo não compreendam o que queremos dizer, por isso precisamos aprender a conversar na diferença, não na igualdade", apontou Barreto.

"Falamos muito da importância da floresta, da água e muitas vezes fomos incompreendidos, agora a ciência traz essa visão. Para nós, as plantas têm vida própria e nós precisamos entender isso para nos colocarmos na teia de relações como sujeito e não como objeto. Assim, tudo vira sujeito: o barulho da floresta, o balanço das folhas. Tudo isso é linguagem."

As mesas da programação da Flip, que se estendem até 5 de dezembro, podem ser vistas gratuitamente pelo canal do YouTube da festa literária.

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