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Flip 2021 resolve falar de plantas em sua guinada mais radical desde a sua criação

Edição que começa em novembro terá equipe de cinco curadores e ainda não anunciou quase nada da programação

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pessoas andando por paraty

Movimento em Paraty no terceiro dia da Flip em 2018 Marcus Leoni/Folhapress

São Paulo

Era evidente que a Flip dava uma das guinadas mais bruscas de seus quase 20 anos de história ao anunciar, em agosto, duas grandes mudanças. A próxima edição, virtual como no ano passado, terá uma equipe de cinco curadores e não destacará nenhum autor homenageado, mas um tema.

"A Flip se transformou numa plataforma para lançar uma ideia para debate", resume Hermano Vianna, colunista deste jornal e um dos curadores da festa, em uma conversa exclusiva de toda a numerosa equipe com o repórter.

Se o festival literário nunca escolheu explicitamente um assunto sobre o qual se debruçar, a edição que vai de 27 de novembro a 5 de dezembro resolveu destacar a relação da literatura com plantas e a floresta, além de prestar homenagem a líderes indígenas mortos pela Covid.

O diretor artístico da festa, Mauro Munhoz, afirma que antes só era possível entender qual era a linha geral de cada edição conforme ela acontecia diante dos olhos do público. "Este ano, pela força do contexto mais difícil que estamos vivendo, tomamos a decisão de que ela teria esse tema de antemão."

Discutir o mundo vegetal num festival literário não é uma escolha nada óbvia. Logo se levantaram críticas de que um dos espaços mais prestigiosos de discussão de literatura estava, oficialmente, relegando essa arte a segundo plano. Em resposta a isso, os curadores sublinham que o tema das plantas sempre esteve nos livros, mas raramente enquadrado com o devido destaque.

Vianna aponta que, mesmo que o debate sobre a importância das plantas esteja pujante em campos como a filosofia e as artes visuais, na literatura ele ainda é periférico —e é aí que a Flip busca "um pioneirismo".

"Ainda há uma centralidade do animal nos estudos literários, mas em Guimarães Rosa a onça anda ao lado do buriti", exemplifica o antropólogo. "Eu brinco que ganhei uma nova biblioteca, com os mesmos livros, mas lidos por outro ponto de vista."

Para a programação de debates, serão trazidos autores que dão protagonismo aos vegetais, seja na ficção, como o Alejandro Zambra de "Bonsai" e "A Vida Privada das Árvores", ou na intelectualidade, como o agora revelado biólogo Stefano Mancuso, de "Revolução das Plantas".

A Flip anunciou também a presença de Djaimilia Pereira de Almeida, que já veio à edição de 2017 e desde então venceu o prêmio Oceanos e publicou "A Visão das Plantas"; da turca Elif Shafak; e do filósofo italiano Emanuele Coccia.

Mas são os únicos nomes divulgados até agora para a festa que começa daqui a pouco mais de um mês, uma demora que revela uma organização mais atribulada que o normal.

Antes disso, haverá um ciclo de homenagem no Sesc que começa já na segunda-feira, dia 25, discutindo aspectos como as artes, a educação e a medicina indígena, com participação de nomes como Sandra Benites, Julie Dorrico e Carlos Papá. A programação deste ano, afinal, também quer dar projeção ao pensamento mais amplo que habita a floresta.

"Nós, povos indígenas, estamos sempre falando da floresta, da terra, do cosmo, do corpo, e talvez nunca tivemos oportunidade de falar tão forte e claro como está sendo nesse momento", diz João Paulo Lima Barreto, doutor em antropologia e também curador do evento, que ressalta esta como uma oportunidade de pôr diferentes filosofias em diálogo. "Os conhecimentos indígenas sempre foram colocados como não ciência. Mas a Covid veio e disse que não é bem assim, que todo conhecimento tem sua importância."

Não dá muito para apontar o que veio antes, a inovação no tema ou no formato de curadoria, já que uma coisa parece refletir a outra.

"Há menos competição que colaboração no mundo vegetal, e esse senso de coletividade tem a ver com a ideia da curadoria florestal", afirma o terceiro curador, o pesquisador Evando Nascimento. "Cada um de nós é singular, com sua formação, mas há uma convergência de visões de mundo."

Inegável que esse modelo também contorna o clamor público feito pela última curadora, Fernanda Diamant, no pedido de demissão em que exortou a Flip a apostar na diversidade escolhendo uma mulher negra para seu posto.

A busca por vozes diversas segue prioritária na organização do evento, segundo a curadora Anna Dantes, editora que fundou o Selvagem, Ciclo de Estudos sobre a Vida, com Ailton Krenak. "Queremos ser escuta das diferentes vozes, a questão da diversidade é de vida, de existência."

Vianna, que coordena o trabalho do grupo, afirma que ele é um "coletivo de coletivos". E nessa organização rizomática, todos fazem coro à ideia de tirar o protagonismo não só de uma pessoa singular, mas do próprio ser humano. "Acho que na verdade a gente está sendo pautado pelo mundo vegetal, e não o contrário", afirma Dantes.

"Dá para dizer que esta é uma edição especialmente encantada", acrescenta Pedro Meira Monteiro, o quinto curador, professor de literatura da Universidade Princeton, para quem as plantas não estão ali para ser objeto, mas para deslocar os humanos e tomar o centro.

Curioso que uma Flip que dê tanta prioridade à discussão sobre terra e natureza —radicalizando uma tendência que sempre esteve presente na festa paratiense— vá acontecer na assepsia do ambiente virtual, pelo segundo ano consecutivo.

O repórter pergunta se há o temor de que o público, exausto de lives, não se anime a acompanhar a programação online de nove dias. Munhoz, o diretor da festa, diz que a experiência da Flip fica de fato mais restrita sem o encontro pessoal e ressalva que haverá manifestações culturais gravadas em Paraty e pequenas sessões organizadas na cidade para assistir à programação.

Em consonância com o discurso do time de curadores, contudo, ele aponta que a pandemia veio mesmo para mostrar que não tinha cabimento continuar a viver como antes. "E ainda tem muita coisa para emergir da experiência dessa parada."

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