SPFW exalta a cultura afro do país na edição mais diversa de sua história

No Dia da Consciência Negra, todas as marcas que apresentaram suas coleções eram de estilistas negros

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São Paulo

Não havia como ser diferente nas últimas horas desta primeira temporada presencial da São Paulo Fashion Week, no Pavilhão das Culturas Brasileiras, depois de dois anos de luzes apagadas. No sábado em que se comemorou o Dia da Consciência Negra, todas as marcas que apresentaram suas coleções eram de estilistas negros.

Para entender a relevância que esse foco direcionado à cultura afro provocou na SPFW, é preciso começar do final, quando o estilista Isaac Silva levou à passarela uma combinação animada de axé —palavra intrínseca à sua trajetória e que aparece estampada em várias de suas criações— estampas coloridas e modelagens ampliadas que vestem todos os biotipos.

Silva furou as diversas camadas do véu racista que envolve a indústria até se firmar como o maior nome do afroempreendedorismo na moda brasileira. No passado, chegou a usar sobrenome gringo para esconder a origem, por medo do preconceito, mas logo aboliu a ideia e chegou ao topo quando assumiu sem reservas a sua identidade.

Ao lado da amiga, designer e ativista pelos direitos de transexuais Neon Cunha, passou a produzir estampas baseadas na cultura afro-indígena, que ganharam as ruas de São Paulo e o guarda-roupa dessa elite que um dia olhou de canto para ele.

Nesta temporada, suas Cores da Bahia, como foi batizada a coleção que aposta na paisagem e nos tons da indumentária do estado, chegará à Europa na parceria inédita firmada pela Havaianas com um designer brasileiro. Não só calçados, mas também roupas viajarão para os pontos da marca no exterior.

Isso significa a coroação de um grupo de estilistas negros que tiveram de provar seu valor por várias temporadas e, agora, são reconhecidos como estetas importantes.

Antes de Silva, no mesmo sábado, outro Silva mostrou o porquê de sua moda baseada em emoções ser tão querida por uma clientela de VIPs da indústria musical, de Iza a Maria Bethânia. Apoiado na ideia de cura, o mineiro Luiz Claudio Silva mesclou à alfaiataria que o identifica muitos detalhes em fios de palha vinculados à imagem do orixá Omulú, a entidade da cura no candomblé.

A resposta à pandemia é carregada de emoção e rigor numa coleção que ainda põe costuras aparentes pelo tecido, emulando a ideia de cicatrizes que todos vão carregar como memórias desse tempo. Plantas de cura foram amarradas às golas e partes de baixo dos looks e serviram até como tecido para um top. Frases escritas por Silva ganharam corpo em estampas aplicadas nos conjuntos, por vezes borrifadas de um brilho discreto.

O perfeccionismo e o sentido de memória afetiva conduziram também a coleção de Angela Brito, cabo-verdiana radicada no Rio de Janeiro. Obrigada a passar seis meses em seu país natal após o fechamento das fronteiras, que a impediu de retornar ao Brasil, a estilista entrou no baú da família para resgatar fotos tiradas pelo pai.

As imagens foram impressas nos looks desgarrados do corpo e na alfaiataria, tão importante na formação do estilo de diversos países do continente africano que sofreram a colonização. Cores terrosas, tais quais a paisagem de Cabo Verde, e o mar local que transita entre o azul e o verde, tingiram as propostas carregadas de significados e da geometria precisa de Brito.

Também neste dia, desfilaram as últimas três das sete marcas da edição do Projeto Sankofa, Mile Lab, Silvério e Az Marias.

Elas aumentaram o volume do discurso a favor da equidade ao trazerem roupas que mostram, em diferentes graus, o perfeccionismo das formas e da arquitetura envolvida na produção de moda. O que faltava a essas marcas, ficou evidente, era espaço.

A urgência de diversidade ainda se fez notar nas criações de grifes de estilistas brancos, mas extremamente influenciados pela miscigenação, tanto cultural quanto física, do país. A Misci, como o próximo nome diz, é uma das que põem a fusão de cores e vivências do país em primeiro plano.

Desfile da Misci, do estilista Airon Martin, na 52ª São Paulo Fashion Week (SPFW)

O estilista Airon Martin olhou para os looks usados por frequentadores de botequins e lanchonetes de beira de estrada para criar uma estética que bebe das referências mais díspares possíveis. Na passarela, era possível ver, por exemplo, a obra da italiana Lina Bo Bardi equacionada com a sensualidade quase explícita do país após os anos 1990.

A arte em estado têxtil permeou vários dos desfiles desta São Paulo Fashion Week, com molho dos mais brasileiros. Uma das mais bem-sucedidas nesse propósito foi a Handred, do estilista André Namitala.

Uma parceria com o Instituto Brennand levou os contornos do legado em cerâmica de Francisco Brennand à renda labirinto, aplicada aos looks arquitetônicos, e às pequenas esculturas ovais posicionadas como aviamentos, fechos e aplicações.

O branco colore a maior parte da coleção, lembrando que, antes de tingidas, as cerâmicas recebem mão de esmalte para servirem de tela para o artista.

Joias douradas feitas pelo designer Carlos Penna potencializaram a pesquisa do estilista ao adicionar geometria aos looks que, em sua maioria, foram trajados por modelos negros.

Foi uma escolha acertada e condizente tanto com a ideia quanto com a nova configuração deste calendário de desfiles, que já pode ser lido como o mais diverso e representativo da história do evento.

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