Elis Regina ainda vive em marcos de Porto Alegre e batiza até torcida do Grêmio

Grupo de teatro espalhou pichações em homenagem à cantora em sua cidade natal logo após a morte dela, há 40 anos

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Porto Alegre

Uma noite, alguns dias depois de 19 de janeiro de 1982, Luciano Alabarse apresentou aos amigos do grupo de teatro em que ensaiava, em Porto Alegre, uma sacola com latas de tinta em spray e uma ideia.

Fãs de Elis Regina, eles costumavam se reunir para ouvir discos dela, iam juntos a shows, alguns chegaram a ter até um contato mais próximo com a cantora, e viviam ali o luto pela perda que encerrou a carreira de uma das maiores intérpretes da música brasileira, aos 36 anos.

A ideia era se contrapor à cobertura de parte da imprensa, voltada mais à causa da morte dela —overdose de cocaína— do que à sua história, afirmando: "Elis vive".

Pichações com "Elis vive" se espalharam por Porto Alegre após a morte da cantora e foram registradas pelo fotógrafo Alfonso Abraham - Alfonso Abraham/ Acervo Elis Regina - Casa de Cultura Mário Quintana

"Movidos pela indignação, a gente disse que tinha de mostrar às pessoas, à imprensa marrom, que ela não tinha morrido, que estava viva. Naquela mesma noite, munidos de nossos sprays amadores, saímos pichando muros", diz o diretor teatral.

"Algumas pessoas que adoraram, me lembro das manifestações nos jornais, na seção de cartas, algumas delas maravilhadas com o movimento, e outras nos xingando até a oitava geração", conta.

"Era engraçadíssimo o que a gente ouvia. A gente tinha verdadeiros embates com o público", lembra o ator Zé Adão Barbosa.

As frases ocuparam várias paredes da capital gaúcha no primeiro ano sem Elis, lembra o fotógrafo Alfonso Abraham, que registrou cerca de 60 pichações e fez delas o tema de uma exposição.

Manifestações semelhantes, com "Elis vive" e "Viva Elis", também apareceram em outras capitais, na mesma época.

João Marcello Bôscoli, filho mais velho de Elis, conta que chegou a receber fotografias de alguns locais. Em São Paulo, lembra, havia um grupo chamado Elis em Movimento, com iniciativa semelhante.

"Para mim, é uma vitória como filho, mas uma vitória que, permanentemente, a gente tem que defender. Num país onde as pessoas são constantemente esquecidas, fico contente por isso não ter acontecido com a Elis", avalia ele sobre a expressão hoje.

"Acho que a Elis tem a sorte de ter pessoas que não se esquecem dela e continuam fomentando isso e, ao mesmo tempo, ela tem uma obra e um carisma que a gente não consegue explicar."

Passadas quatro décadas desde a sua morte, Elis parece nunca ter saído de cena, tanto com a obra, quanto em falas sobre posições que ela defendia, como feminismo, aborto, política.

Ela tem 2,2 milhões de músicas tocadas por mês no Spotify, segundo levantamento feito por Arthur de Faria, autor de "Elis: Uma Biografia Musical" (Arquipélago Editoral).

"Tu acreditas em cada palavra que ela está dizendo, quando ouve, por exemplo, ‘Como Nossos Pais’, ela cantando com aquele ódio, aquela frustração, esse tipo de intensidade, que nunca é brega, exagerado, é sempre na medida", avalia.

Na capital gaúcha, onde Elis Regina Carvalho Costa nasceu, turistas e curiosos ocasionais ainda passam pela casa 21, na rua Rio Pardo, num conjunto habitacional feito para industriários, iniciado durante o Estado Novo, e pelo largo em frente, com o nome dela em uma placa de pedra quase apagada.

Marisa Ramos, 69, que mora a vida toda no local, se recorda com carinho a menina com quem cresceu, que via cantar e de quem sempre foi fã. Chegou a dar o nome Elis Regina à sua boneca.

"Quando ela foi embora, foi como se uma irmã fosse embora. Ela venceu, é gratificante, mas a gente sentia muita falta", lembra.

"Às vezes, fico pensando como ela seria agora. Olho para minha irmã, que regulava [em idade] com ela. Eu gostaria de saber como ela estaria."

Uma estátua de Elis, inaugurada em 2009, na Usina da Gasômetro, um dos cartões-postais da cidade, ainda que contestado em termos estéticos, se tornou ponto bastante visitado em Porto Alegre. Assim como a sala na Casa de Cultura Mário Quintana, que exibe o maior acervo público sobre Elis no país.

Durante a semana, o Instagram do local, @ccmarioquintana, deve divulgar link com material digitalizado do que há na casa.

Camiseta em que o de Elis Regina substitui "Ordem e Progresso, na bandeira do Brasil, censurada na época da ditadura militar, em exposição no acervo dela, na Casa de Cultura Mário Quintana - Fernanda Canofre/Folhapress

Um dos itens nele é uma camiseta com a bandeira do Brasil estilizada, na qual o nome de Elis Regina substitui o lema Ordem e Progresso —ela foi proibida de se apresentar com uma peça semelhante, em plena ditadura militar, e foi enterrada vestindo o item.

"Ela não era um Chico Buarque, mas sempre manifestou repúdio à censura, à própria ditadura. Eram posições muito claras", diz Regina Echevarria, autora de "Furacão Elis" (LeYa) e amiga da cantora.

"Quantas coisas aconteceram nesses 40 anos que deixaram a Elis muito ‘viva’?"

Elis Vive é também o nome adotado, desde 2018, por um coletivo de torcedoras do Grêmio, em homenagem à sócia 688 do tricolor gaúcho.

"Nós a elegemos como um símbolo que representava todas nossas pautas: liberdade sobre nossos corpos, direito de ser torcedora, combate à violência de qualquer tipo", diz Patrícia Ferreira, integrante do coletivo.

No livro que escreveu sobre os 11 anos, seis meses e 19 dias que teve ao lado da mãe, "Elis e Eu" (Planeta), João Marcello diz que há anos é questionado sobre o que se lembra dela.

"Para quem ama, tudo aconteceu anteontem", diz ele.

"Eu nunca quis ficar triste, uma decisão adolescente minha, porque não queria que a minha mãe ficasse triste, onde quer que ela estivesse. E aí fui me moldando através dos anos. A saudade, me parece, não é a ausência de alguém, é a presença."

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