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'Barulho de Preto', clássico sobre hip-hop, faz mixtape de teorias

Tricia Rose vê rap como uma arena de conflito contra o mainstream e a academia, além dos conflitos de classe e gênero

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Acauam Oliveira

Barulho de Preto

  • Preço R$ 69,90 (336 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autor Tricia Rose
  • Editora Perspectiva
  • Tradução Daniela Vieira e Jaqueline Lima Santos

Quase duas décadas depois de os MCs Amilcka e Chocolate anunciarem a dimensão inexorável da rendição de todo corpo (mesmo os notoriamente entrevados, como os corpos acadêmicos) aos encantamentos rítmicos das quebradas, chega ao Brasil o livro "Barulho de Preto", de Tricia Rose, professora da Universidade Brown, em tradução cuidadosamente elaborada por Daniela Vieira e Jaqueline Lima Santos.

A obra, considerada um dos marcos fundadores do campo de estudos sobre o hip-hop, foi publicada originalmente em 1994 —mesmo ano de lançamento de "Illmatic", de Nas, e "Read to Die", de Notorious B.I.G., e um ano após o surgimento do clássico "Raio-X do Brasil", dos Racionais MC’s.

Lendo o livro, é fácil perceber as qualidades que o levaram a se tornar um clássico. Munida de olhar rigoroso e extrema erudição, Tricia Rose atua como uma espécie de "MC acadêmica", sampleando perspectivas teóricas diversas –análise do discurso, sociologia urbana, teoria da comunicação, história social, feminismo negro, etnomusicologia et cetera– de modo a construir um painel vivo e dinâmico capaz de captar com sucesso a multiplicidade de registros e camadas que compõem o seu objeto.

dois rappers negros posam com cara de mal
Os rappers The Notorious B.I.G., nome artístico de Christopher Wallace, e 50 Grand - Divulgação

É possível pensar no livro como um rio para onde correm diversos afluentes epistemológicos ou, melhor dizendo, como uma mixtape de peso que fornece matéria-prima para a produção de inúmeros samples clássicos.

A obra se divide em cinco capítulos, organizados a partir de uma série de tensões –marginalização social e sucesso comercial; tradição afro-diaspórica e modernização tecnológica; adesão ao mercado e contestação crítica; discurso de resistência e estratégias de cooptação; misoginia gangsta e a reação-adaptação feminina.

O caminho escolhido por Rose, de grande rendimento crítico, é o enfrentamento franco e dialético das contradições, em tudo avesso a soluções fáceis e simplórias. Ainda que se ponha francamente em defesa do rap, confrontando interpretações equivocadas de críticos e entusiastas, em nenhum momento a firmeza de seu compromisso sacrifica a densidade do seu olhar.

Contrário a qualquer reducionismo das ideias, e por respeito aos seus irmãos, o livro opta por explorar ao máximo as ambiguidades do gênero que, no limite, são as mesmas da juventude negra americana em contexto de desagregação neoliberal.

A imagem final, sugerida pela própria estrutura da obra, é a do rap como uma arena de conflito que se organiza em diversas frentes –contra a opinião pública mainstream, contra os mecanismos de cooptação do mercado, contra a arrogância da crítica acadêmica, contra os órgãos de repressão do Estado, além dos conflitos internos de classe e gênero.

É nessa arena que MC Rose se movimenta, assumindo múltiplas identidades que servem para "sabotar o raciocínio" de seus interlocutores. Se em dado momento ela mobiliza o ponto de vista negro para rebater as críticas do feminismo branco —que frequentemente desconsidera a especificidade da vivência das mulheres negras—, em outro ela "retorna" a esse mesmo feminismo para se contrapor à misoginia gangsta.

Tudo isso apenas para, na sequência, retornar para a trincheira negra, ao perceber que o elogio aparentemente progressista das mulheres no rap funciona como uma estratégia de fragilização comunitária.

Da mesma forma, ela se afasta do campo acadêmico quando este demonstra ser incapaz de dialogar com a complexidade da linguagem periférica, para retornar a ele quando precisa confrontar estratégias de manipulação diversas. Em suma, o livro transita com maestria por um campo minado, cercado de riscos por todos os lados, com a sagacidade de quem participa de uma batalha de MCs.

Em relação a nosso próprio terreiro, podemos dizer que a versão em português de "Barulho de Preto" chega em momento bastante oportuno, quando se observa uma crescente expansão das pesquisas sobre hip-hop nas universidades brasileiras.

Notemos que o movimento faz parte de um contexto mais geral de ampliação do horizonte de saber das universidades, em busca de novas vozes e perspectivas para além daquelas já há muito conhecidas.

Contudo, mais importante do que celebrar essa bem-vinda abertura de visão, é saber reconhecer isso por aquilo que é –o resultado de uma estratégia paciente e sagaz que vem de longe, tomando a cena de assalto ali onde menos se espera. Sabedoria ancestral há tempos compartilhada pelos nossos.

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