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'Marte Um', filme nacional em Sundance, não seria feito sob Bolsonaro, diz cineasta

Longa de Gabriel Martins, da cena de Contagem, foi rodado em 2018, fruto do primeiro e último edital afirmativo no país

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Los Angeles

Wellington, um porteiro pai de família e fanático pelo Cruzeiro, traça grandes planos futebolísticos para seu filho pré-adolescente, mas o garoto tímido, de fato muito bom de bola, sonha com outras estrelas, em especial Marte, o planeta vermelho.

Tércia, a mãe protetora, e Eunice, a irmã mais velha, completam a família Martins, centro da história de "Marte Um", longa-metragem brasileiro em exibição no Festival Sundance. O maior evento do cinema independente norte-americano começou na quinta e acontece virtualmente até o final do mês.

A direção é do mineiro Gabriel Martins, codiretor de "No Coração do Mundo", de 2019, e sócio fundador da Filmes de Plástico, produtora que vem se destacando nos últimos anos ao levar produções a festivais internacionais.

Martins conta que a ideia do longa surgiu a partir do personagem de Deivinho, vivido por Cícero Lucas, um garoto negro de classe média que sonha escondido em ser astrofísico e participar de uma missão bilionária para colonizar Marte em 2030.

"É um caminho que para ele nem sequer tinha sido pensado, é algo ousado", diz o diretor por telefone.

Marte Um foi um programa real lançado em 2012 com intuito de selecionar humanos para uma viagem sem volta, embora a organização europeia tenha decretado falência em 2019. A Nasa, no entanto, segue mandando sondas e rovers para investigar o planeta, enquanto Elon Musk, CEO da SpaceX, prevê que humanos devem chegar a Marte em 2026.

"Marte é um planeta potente, tem seu lugar no imaginário romântico da ficção científica. Tem uma relação também com o masculino, uma questão que está no filme", continua Martins.

O pai Wellington, personagem de Carlos Francisco, tenta impor suas vontades, mas vai falhando enquanto os filhos se afastam. Eunice, papel de Camilla Damião, estudante de direito, descobre o amor por outra mulher e quer sair de casa, enquanto a faxineira Tércia, sob a pele de Rejane Faria, combate seus próprios demônios particulares.

Embora não traga exatamente cenas futuristas, "Marte Um" inspira elementos afrofuturistas. "Mesmo que eu não execute no filme, abro possibilidades de imaginação, como uma imagem que se cria sobre o futuro de Deivinho, um sonho e uma possibilidade de um astronauta brasileiro negro", diz Martins. "É uma imagem afrofuturista."

O diretor é também músico e compositor, membro da banda Diplomattas, criada para compor a trilha sonora de "No Coração do Mundo". O grupo já fez shows em Belo Horizonte pré-pandemia com músicas próprias e releituras de clássicos da música negra de vários gêneros, de samba a soul.

A trilha de "Marte Um" é do músico paranaense Daniel Simitan — que também trabalhou em "Jesus Kid", de Aly Muritiba —, que trabalha com uma orquestra em Londrina. Mas Martins também compôs uma música original, junto com os artistas Heberte Almeida e Ohana, para uma cena num clube noturno, quando Eunice conhece sua namorada pela primeira vez.

"Mesmo com um orçamento apertado para a trilha, o Daniel possibilitou muitas coisas, foi um parceiro gigante", disse Martins. "A música pontua de maneira bem forte uma atmosfera romântica a partir do lugar dos sonhos. Tem uns toques de violoncelo que trazem uma intensidade para as cenas."

O filme se passa na época de eleição do governo Bolsonaro, algo que azeda não só a vida dos protagonistas como também a do próprio diretor e sua produtora, na esteira do desmonte da produção de cinema no país.

Martins conta que "Marte Um", rodado em 2018, foi financiado pelo primeiro e último edital afirmativo do Brasil, que contemplou três longas-metragens produzidos ou dirigidos por pessoas negras.

Hoje, porém, ele está com projetos engavetados e luta com as burocracias da Agência Nacional de Cinema, a Ancine, para receber os fundos de editais para projetos ganhos já faz alguns anos.

"‘Marte Um' é um exemplo claro que certamente não aconteceria hoje em dia. E é evidência que com apoios como esse [editais afirmativos] a gente consegue fazer filmes que viajam o mundo, chegam a festivais renomados", disse Martins. "Não existe argumento para dizer que não dá para apoiar o cinema brasileiro."

"Imagina, estou aqui lançando ‘Marte Um’ num festival grande internacional, e não tenho perspectivas, não sei qual será meu próximo filme."

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