Descubra a saga dos cineastas de Contagem que conquistaram o mundo

Quatro mineiros de classe média baixa fundaram há 10 anos a produtora Filmes de Plástico, que acumula prêmios e reconhecimento internacional

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Marcelo Miranda

[resumo] Em 2009, quatro cineastas mineiros de classe média baixa fundaram a produtora Filmes de Plástico, cujo primeiro curta custou apenas R$ 500. Uma década depois, exibem o terceiro longa e acumulam prêmios e reconhecimento internacionais.

“E a luz se fez em Contagem.” Com a assertiva, o cineasta Carlos Reichenbach, o Carlão, constatou em 2010, durante a competição do Festival de Brasília, o vigor de um pequeno trabalho realizado por uma nova e modesta produtora de Minas Gerais, a Filmes de Plástico.  

O nome do curta-metragem era “Contagem”, igual ao da cidade de origem dos diretores Gabriel Martins e Maurílio Martins, onde acontecia a ação do filme. Em seu blog, Olhos Livres, Carlão exaltou “a descoberta de uma pérola do curta-metragem recente, que anuncia de forma retumbante o nascimento de um novo ciclo deflagrador.”

Morto em 2012, o cineasta não acompanhou a ascensão e glória daqueles jovens que gastaram apenas R$ 2.500 para produzir “Contagem”, seu projeto de conclusão de curso de faculdade, se endividaram para levá-lo em película ao Festival de Brasília e saíram de lá com o troféu de melhor direção.

Os cineastas da Filmes de Plástico (da esq. para a dir.): Thiago Macêdo Correia, Maurílio Martins, Gabriel Martins e André Novais Oliveira 
Os cineastas da Filmes de Plástico (da esq. para a dir.): Thiago Macêdo Correia, Maurílio Martins, Gabriel Martins e André Novais Oliveira  - Divulgação

A Filmes de Plástico havia sido criada um ano antes, em 1º de abril de 2009, data em que seus integrantes até aquele momento —Maurílio Martins, Gabriel Martins e André Novais Oliveira— finalizaram o curta “Filme de Sábado”, com direção de Gabriel. Aquele que viria a se tornar o quarto membro do grupo, Thiago Macêdo Correia, assinou a direção de produção nesse primeiro projeto. 

Desde então, já se somam 15 curtas-metragens, três longas, dezenas de sessões no mundo e diversos prêmios.

A produtora celebra em 2019 sua primeira década de atuação. No início deste mês, lançou nos cinemas um novo filme, “No Coração do Mundo”. Dirigido por Maurílio e Gabriel, o longa é definido como “prequel” de “Contagem”.

Por conta dos dez anos de atuação, a companhia será homenageada pela 13ª CineBH – Mostra de Cinema de Belo Horizonte, festival internacional a ser realizado de 17 a 22 de setembro.
Trata-se de um caso singular na cinematografia contemporânea brasileira. Três integrantes da Filmes de Plástico vêm de Contagem, cidade localizada na região metropolitana de BH, com 660 mil habitantes, terceira maior de Minas. 

Nascidos no município mineiro de economia puxada pelo comércio e pela indústria, Gabriel, 31, e Maurílio, 41, se conheceram em 2006, quando foram parar na mesma turma de uma faculdade de cinema em Belo Horizonte. Numa apresentação típica de começo de curso, Maurílio contou ser do bairro Jardim Laguna, em Contagem. Ao seu lado, um rapaz dez anos mais jovem replicou: “Que isso, bicho?! Eu sou do Milanez!”. 

A empolgação não foi compreendida pelo restante da turma, cerca de 50 alunos, pois não havia mais ninguém de Contagem ali. Gabriel e Maurílio se descobriram não só com um mesmo sobrenome (Martins), mas também moradores de bairros vizinhos. Constataram gostos muito parecidos em filmes, música e time de futebol (são torcedores do Cruzeiro) e passaram a fazer juntos, a pé e de ônibus, o longo trajeto entre Contagem e a faculdade. 

“Sempre nos sentimos isolados dos amigos e das coisas de que a gente gostava, pela falta de uma estrutura ou equipamento cultural na cidade que permitisse a convivência naquilo que a gente curtia”, lembra Maurílio.

No ano anterior, 2005, Gabriel tinha estudado na Escola Livre de Cinema, curso de formação em audiovisual na capital mineira com duração de dois anos. Lá conheceu André Novais, hoje com 35 anos, outro contagense, morador do bairro Amazonas. 

Feita a ponte dele com Maurílio, formava-se a primeira trinca que daria origem à Filmes de Plástico. “Filme de Sábado”, produzido ao custo de R$ 500, foi filmado em um único dia na casa de Gabriel.
 

Thiago Macêdo, 35, natural de Teófilo Otoni (450 km da capital) e também estudante na Escola Livre na segunda metade dos anos 2000, foi chamado para ser diretor de produção do curta. Meses depois, ele convocou Gabriel, Maurílio e André para um café e propôs assumir trâmites de produção e organização da ainda informal produtora. 

Todos vindos de famílias humildes, estavam apreensivos e sem recursos para grandes investimentos. “O encontro nesse dia foi muito significativo, porque vivíamos uma situação financeira tão difícil que pedimos duas empadas para dividir entre nós quatro”, relembra Thiago, cuja mãe era quitandeira e doceira e o pai, representante comercial.

“Fazer cinema não era, a nenhum de nós, uma escolha óbvia na vida”, completa Gabriel, de mãe costureira e professora e pai contínuo num escritório. Na casa de Maurílio, o pai era marceneiro, e a mãe, dona de casa; na de André, a mãe trabalhou numa seguradora e o pai foi motorista.

O quarteto saiu da reunião cheio de ideias, projetos e esperanças. Menos de dois anos depois, eles estavam no Festival de Cannes, exibindo o curta “Pouco Mais de um Mês” na Quinzena dos Realizadores. Com direção de André Novais, o filme apresentou a logomarca da Filmes de Plástico (uma baleia de borracha que tinha sido parte do cenário de “Filme de Sábado”) no maior evento de cinema do mundo pela primeira vez. Outras ocasiões viriam, e não apenas na Croisette. 

A produtora Filmes de Plástico fica numa sala do 23º andar de um prédio do hipercentro de Belo Horizonte, na movimentada praça Sete de Setembro. Foi lá, com vista ampla para a capital, que Gabriel, Maurílio e André conversaram com a Folha. Thiago, em viagem de produção, participou à distância. 

O grupo define três grandes momentos de consolidação da produtora. O primeiro foi na Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2010, quando exibiram “Fantasmas”, curta de André. Filmado na casa do diretor, composto de um único plano de uma rua à noite e com atuação (só por vozes) de Maurílio e Gabriel, o trabalho se tornou a sensação do festival na ocasião, pela simplicidade de produção e complexidade de sentidos. 

“É uma obra-prima”, diz Inácio Araujo, crítico da Folha, sobre “Fantasmas”. “A imensa audácia de fazer um filme com um plano, primeiro fixo e depois em zoom, sobre uma imagem aparentemente anódina, e o longo diálogo entre os amigos. Só a partir de certo momento vai revelar porque estão (estamos) lá: a obsessão amorosa. Nunca vi, não que me lembre, a obsessão amorosa ser captada de maneira tão intensa, tão forte, quanto aqui.”

O segundo momento foi a exibição de “Contagem” no Festival de Brasília, com a empolgação de Carlão Reichenbach, ídolo e inspiração de todos os integrantes da Filmes de Plástico. O terceiro ponto de virada foi em maio de 2013, quando levaram “Pouco Mais de um Mês” para Cannes. Exibido em Tiradentes no começo daquele ano, o filme chamou a atenção de curadores internacionais.

Thiago se animou e inscreveu o curta na mostra paralela Quinzena dos Realizadores. Seus colegas não acreditavam que aquele pequeno filme, rodado numa única manhã dentro de casa, com apenas duas pessoas (o próprio diretor, André, e a então namorada Élida Silpe) interpretando a si mesmas num começo de relação amorosa, pudesse conquistar atenção de programadores europeus. “Eu estava andando por BH quando recebi a ligação do Thiago contando que a gente tinha sido selecionado. A ficha não caiu”, lembra André.

“Pouco Mais de um Mês” saiu do festival com menção especial do júri da Quinzena dos Realizadores. Dali em diante, a presença internacional da Filmes de Plástico se amplificou, fazendo de seus filmes parte da identidade de um novo cinema brasileiro. 

O primeiro longa de André Novais, “Ela Volta na Quinta”, estreou no FID Marseille, em 2014. Seu curta seguinte, “Quintal” (2015), e o curta “Nada” (2017), de Gabriel Martins, também passaram na Quinzena do Festival de Cannes.

O segundo longa de André, “Temporada” (disponível na Netflix), competiu no Festival de Locarno e foi o grande vencedor do Festival de Brasília em 2018. Já “No Coração do Mundo” esteve na seleção de Roterdã no começo de 2019. 

Como muitos de sua geração, os cineastas da Filmes de Plástico descobriram o cinema pelas fitas em VHS e pelos filmes exibidos na TV aberta, nos anos 1980 e 1990. 

Cena do filme "Ela Volta na Quinta", de André Novais Oliveira
Cena do filme "Ela Volta na Quinta", de André Novais Oliveira - Gabriel Martins/Divulgação

O pequeno André adorava alugar os filmes de Mazzaropi e assistir a Spike Lee nas madrugadas da TV, enquanto Thiago, ainda no interior de Minas, se dividia entre Trapalhões e longas indicados ao Oscar. Nos anos 2000, ambos trabalharam como balconistas de videolocadora em Belo Horizonte. 

A formação mais inusitada foi a de Maurílio. “Por motivos religiosos, minha casa nunca teve televisão. Eu assistia a filmes e desenhos animados nos vizinhos”, conta ele. Muitas vezes via TV na casa de Delardino Caetano, que anos depois seria  um dos personagens-título do curta “Dona Sônia Pediu uma Arma ao Seu Vizinho Alcides”, dirigido por Gabriel. Delardino repete o mesmo papel no longa “No Coração do Mundo”. 

O gesto de chamar vizinhos, amigos e parentes para atuar —ora em autoficções, ora construindo personalidades puramente inventadas nos roteiros— vinha desde “Filme de Sábado”, consolidou-se em “Pouco Mais de um Mês” e virou praxe nos filmes do grupo. “É uma coisa muito ancorada nas nossas experiências pessoais e na vontade de contar histórias a partir do que a gente vive”, afirma Gabriel.

O cinema feito pelo grupo se fixa em Contagem como cenário geográfico e afetivo dos dramas, com a cidade enquadrada como autêntica personagem, um espaço bem diverso das imagens exuberantes de metrópoles brasileiras captadas em geral pelas produções mais comerciais. 

Comentando “Temporada”, Inácio Araujo diz: “Não sei se Contagem é uma cidade bonita, mas sua fotogenia ali é explorada até o osso. O que me encanta é a perfeita intimidade com o lugar, a cidade, as personagens”. 

Sem idealização, Contagem surge nas telas com personalidade multifacetada. Tanto no dia a dia comum visto pelas lentes de André Novais quanto num certo tipo de submundo afetivo à luz do dia que aparece nas obras de Gabriel e Maurílio, a imagem de uma cidade industrial e periférica, que parece deixada de lado por boa parte do poder público central, emoldura os personagens. 

Alguns convivem bem, outros querem ir embora o quanto antes. Há espaço para o lúdico, como em “Quintal”, e para a violência malfadada, como em “No Coração do Mundo” —cuja música-tema, cantada pelo rapper MC Papo, dá a real: “BH é o Texas, Contagem é o motherfucking Texas”. 

A presença de figuras do cotidiano de Contagem, sobretudo pessoas negras e de periferia, amplifica a sensibilidade buscada pelos realizadores, por meio de criações inspiradas em momentos de suas vidas. Juliana, interpretada pela atriz e dramaturga Grace Passô em “Temporada”, surgiu da experiência de André Novais como funcionário do controle de zoonoses da cidade.

Élida Silpe e André Novais Oliveira em cena do curta metragem "Pouco Mais de Um Mês", dirigido por André
Élida Silpe e André Novais Oliveira em cena do curta metragem "Pouco Mais de Um Mês", dirigido por André - Divulgação

“Ela Volta na Quinta” e “Quintal”, ambos também de André, são protagonizados por Zezé e Norberto, mãe e pai do diretor (dona Zezé, que atuou em outros trabalhos do grupo, morreu em 2018). Renato, irmão do diretor, e Élida, sua companheira à época, aparecem interpretando versões de si mesmos nas ficções construídas em torno de todos eles. Grace, Renato, Élida e Zezé ganharam prêmios de atuação no Festival de Brasília em anos diferentes, o que demonstra a força dessas escolhas. 

“No Coração do Mundo” propõe uma teia de relações cuidadosamente construída em solilóquios de deliciosa prosódia mineira. Das presenças hipnóticas em cada cena, ergue-se um filme de potência única, que transita do cotidiano mais ordinário do bairro ao acúmulo de fracassos e tragédias pessoais de alta escala nos becos e ruas do Jardim Laguna.

“Nosso cinema é muito guiado pela subjetividade dos personagens. Não identifico um gênero em comum nos filmes que fazemos, eles até são bastante diferentes uns dos outros, mas todos têm o desejo de mostrar pessoas em busca de alguma coisa que a gente quer acompanhar”, comenta Gabriel. 

André completa: “É um processo em que, de certo modo, pedimos emprestadas as personalidades dessas pessoas, e aí colocamos nas nossas histórias”. “São filmes sobre coisas que a gente conhece, é o cinema do quintal de casa que se torna o universo”, afirma Thiago. 

Filhotes diretos das políticas públicas de descentralização da produção audiovisual brasileira nos últimos 15 anos, os integrantes da Filmes de Plástico se preocupam com os atuais rumos da cultura no Brasil. “Os nossos próximos projetos envolvem, como vem sendo em tudo que a gente faz, vários tipos de minorias pelas quais esse governo atual não se interessa, então isso é uma questão que pode nos afetar. É um momento de muita dúvida sobre como a cultura vai se portar daqui para frente”, avalia Gabriel.

Erramos: o texto foi alterado

A Mostra de Cinema de Belo Horizonte fará neste ano sua 13ª edição, não 12ª. Por erro de edição, a cidade de Contagem foi identificada como Congonhas em um parágrafo.
 

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.