Mostra sobre Samson Flexor retoma clima aterrorizante da ditadura militar no Brasil

Artista romeno foi pioneiro da arte abstrata e produziu obras sobre atmosfera obscura dos anos 1960 no país

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São Paulo

As cores solares com que Samsom Flexor pintou suas composições abstratas no final dos anos 1940, com elogios a festanças carnavalescas, desaparecem na década de 1960.

No Brasil da ditadura militar, o pioneiro da arte abstrata no país resolveu convocar figuras monstruosas em tons sombrios, formadas por uma massa espessa de matéria. Era um contorno da atmosfera aterrorizante brasileira, cada vez mais densa sob um regime autoritário.

A série "Bípedes" ou "Pictantropos", que ele mostrou pela primeira vez na Bienal de São Paulo de 1967, é o auge da obra mais tardia do artista sobre o qual a mostra "Samsom Flexor: Além do Moderno", no Museu de Arte Moderna de São Paulo, agora se debruça.

Essa é a primeira exposição em quase 20 anos sobre o artista nascido na Moldávia que se instalou no Brasil no fim dos anos 1940. "Este é um artista que vem de uma tradição moderna, da experimentação da forma, mas que nos anos 1960 passa para o contemporâneo", diz Kiki Mazzucchelli, que organiza a mostra.

"Ele está falando de ditadura, de violência e de política nessa série, mas também do sentido existencial da civilização em crise. É o que a gente vive nos últimos anos, em que em várias democracias que achávamos estáveis começam a emergir governos de extrema direita."

Obra de arte
'Bípede', obra de 1967 de Samson Flexor em exposição no MAM de São Paulo - Coleção Museu de Arte Contemporânea de Niterói/Paulinho Muniz/Divulgação

Para alguém com a trajetória de Flexor, a instalação de um regime autoritário é um trauma agudo. Ele estudou arte na França, onde frequentou ateliês como os de Henri Matisse e Fernand Léger e participou de uma vida cultural agitada. Foi lá também que conheceu sua primeira mulher, morta durante o parto de seu primeiro filho.

Mas a ocupação nazista do país interrompeu em parte sua carreira. De família judia, ele escapou por pouco das atrocidades alemãs muitas vezes. Quando a guerra finalmente cessou, a vida com os novos filhos e mulher era de penúria.

Foi em 1946 que ele recebeu um convite para organizar uma exposição coletiva em São Paulo, onde se instalou de vez em 1948, época em que a abstração também começava a ser introduzida na arte brasileira. "Ele escolheu esse país para viver como se fosse um novo mundo, em que tudo era efervescente", resume Mazzucchelli.

Mas, do ponto de vista estético, o percurso que o afasta das inspirações cubistas começa dez anos antes das exposições dos "Bípedes", quando ele passa a experimentar novos gestos, transparências e o que mais tarde chamou de aberturas —e a exposição mantém exemplos didáticos dessa trajetória.

A organizadora da exposição conta que o intuito é introduzir o aspecto mais conhecido da obra de Flexor, que é mais solar e feliz. "São pinturas que têm essa característica do cubismo sintético e estão ligadas a temas brasileiros", conta ela.

As obras também passeiam por um simbolismo litúrgico, numa aproximação com temas católicos que Flexor teve contato após a morte de sua primeira mulher. Ali, ele se converteu ao catolicismo quando se aproximou de um abade em busca de apoio espiritual diante da morte.

Aquela era uma época em que o Brasil também passava por uma modernização importante, que coincide com o surgimento de várias iniciativas de arte moderna, caso das criações dos museus de arte moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro e do Masp.

Mas Mazzucchelli lembra que o nosso modernismo, ainda na ressaca da Semana de Arte Moderna de 1922, ainda era muito ligado à arte figurativa.

Flexor que, talvez com uma dose de pretensão, dizia ter feito a primeira obra abstrata no país, foi uma das figuras ativas na defesa da abstração no embate que se deu entre os dois tipos de expressão e manteve o Ateliê Abstração. "Ele fazia, como dizia, um proselitismo da abstração no Brasil", conta ela.

Mas já em 1956 acontece o evento que marca a ruptura do artista com essa estética pelo qual ficou mais conhecido. Nova York sediou uma exposição sobre expressionistas abstratos, que reunia os gestos ativos de nomes como Jackson Pollock a precursores anteriores do movimento, como Claude Monet com suas ninfeias translúcidas.

É aí que sua paleta encontra tons escuros, suas pinceladas se esfumaçam e seus gestos aparecem. Os quadros que Flexor chama de "Elãs", com vetores de massa muito aparente e densa, parecem apontar primeiro para as pinturas que lembram grandes pedras preciosas, de contornos saltados.

Obra de arte abstrata
Obra de Samson Flexor em exposição no MAM de São Paulo - Divulgação

Depois, para o que ele chamou de aberturas, em que os contornos abrem grandes buracos na tela onde uma série de planos se misturam. "Senti necessidade de abrir esses blocos, naquilo que chamei de abertura. Já a pintura tomou um caminho bem diferente, uma espécie de necessidade existencial em relação à vida do homem, aquela necessidade de abertura, de esperança. E, dentro da abertura, às vezes aparecem obstáculos", disse o próprio artista em depoimento de 1968.

Quando os contornos da abertura se levantaram, para ele, elas se tornaram grandes crateras —que foram vistas por um crítico americano como olhos de um Ciclope. Flexor se voltava, ali, para a figuração e chegava finalmente aos "Bípedes", filhos do Ciclope e do autoritarismo.​

Mas não foi só o golpe militar que mudou o tom da produção do artista romeno em 1964. Naquele ano, Flexor recebeu o diagnóstico de uma doença cardíaca terminal, que o mataria sete anos depois. Essas figuras antropomórficas se desfazem na chamada fase branca de sua produção. As peles já estão craqueladas e esbranquiçadas, marcadas só por extensas manchas vermelhas.

"Há um vazio nos seios e no ventre das figuras femininas dessa fase, como se a vida já não produzisse outra vida", diz Mazzucchelli.

Mas são corpos que, se esfacelando no fim da existência, reencontram figuras geométricas que parecem sustentar seus músculos, como um retorno às formas que desembocaram na experimentação de formas na trajetória de Flexor.​

Samson Flexor: Além do Moderno

  • Quando 22/1 a 26/6. Ter. a dom.: 10h às 18h
  • Onde No Museu de Arte Moderna de São Paulo - parque Ibirapuera (av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, portões 1 e 3)
  • Preço R$ 25. Gratuito aos domingos. Agendamento pelo mam.org.br/ingresso
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