Neoliberalismo e ascensão da extrema direita ameaçam democracia moderna, avaliam cientistas políticos

Livro 'Estado e Democracia' reconstrói história do regime político e lança questionamentos sobre próximos passos

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Philippe Scerb
São Paulo

Em 322 a.C., a conquista de Atenas pelo Império Macedônio interrompeu, depois de pouco menos de 200 anos de história, a primeira experiência democrática de que se tem notícia. Atualmente, é a vez da versão neoliberal do capitalismo e do apoio popular a lideranças como Donald Trump e Jair Bolsonaro colocarem em risco o regime democrático. Curiosamente, pouco mais de 200 anos depois de ele ter sido recuperado pelas revoluções Americana e Francesa, em fins do século 18.

"Estaríamos diante de uma maldição, segundo a qual democracias só podem durar 200 anos?", brincou André Singer, professor titular de Ciência Política da USP, em debate virtual organizado pela Folha e pela Companhia das Letras para marcar o lançamento do livro “Estado e Democracia”, na noite da última quinta-feira (11).

O evento foi mediado pela repórter da Folha Patrícia Campos Mello e contou com a participação dos outros dois autores da obra: Cícero Araujo, também professor titular de Ciência Política da USP, e Leonardo Belinelli, doutor pelo mesmo departamento.

Ao abrir o debate, Mello afirmou que a leitura da obra é essencial para entender o que vivemos hoje. Mas as falas dos autores, na sequência, deixaram claro que seu objetivo vai além da compreensão do momento perigoso que atravessa a democracia e reconhece a necessidade de agir sobre ele.

Como dizem no prefácio do livro, “para entrar em ação, é necessário saber como atuar e, sobretudo, em que direção fazê-lo. Construir uma visão dos problemas e afiar os instrumentos teóricos permitem a boa intervenção na realidade”.

Com esse propósito em mente, os autores discutem conceitos do estudo da política por meio de certos episódios e de longos processos históricos. A obra parte da invenção da política na antiguidade clássica e chega até a onda antidemocrática contemporânea.

Sabendo que seria difícil descrever 2.600 anos de história em 30 minutos de exposição, a saída encontrada para o debate foi apresentar, nas palavras de Singer, “um pequeno trailer” da obra, dividido em três partes, ou a “democracia em três tempos”.

No primeiro deles, focado na experiência de Atenas, Cícero Araujo mostrou como o livro conta a história da política e da democracia como um movimento de formas que vai contra o suposto curso natural das coisas.

Com efeito, os críticos da democracia, ontem e hoje, costumam dizer que todos os espaços, desde a família até a sociedade, são marcados por uma ordem hierárquica. Os democratas gostariam, então, de desenhar um círculo onde só caberia a forma piramidal. E por que um círculo?

Porque o círculo, diz Araujo, é uma figura geométrica em que todos os pontos têm a mesma distância em relação ao centro, o que denota a igualdade das pessoas inseridas na forma para “tomar a palavra e aconselhar sobre os assuntos comuns”.

Em Atenas, a política já operava no registro do círculo bem antes do advento da democracia. Mas ele era restrito às mais altas estirpes de uma sociedade muito hierarquizada. O que fez a democracia foi introduzir um elemento de estranheza dentro do círculo, a saber, os homens de todos os estratos sociais, inclusive os mais pobres e humildes.

A democracia não liquidou as diferenças. Tampouco pôs em dúvida o caráter subalterno de mulheres, escravos e estrangeiros, que nunca foram considerados cidadãos em Atenas. Mas ela inaugurou um tipo de política mediada pela tensão que provoca a disposição dos homens do povo de influenciar as principais decisões da polis.

À medida que o povo perdeu a confiança em si mesmo e a disposição para se autogovernar, na esteira da instabilidade gerada pela guerra do Peloponeso, a breve experiência democrática foi interrompida. Uma faísca histórica, se considerarmos que nossa civilização conhece a política há mais de 3.000 anos.


Assista ao debate:


Na segunda parte da exposição, Leonardo Belinelli descreveu os resultados das revoluções Inglesa, Americana e Francesa. Chamadas pelos autores de “revoluções democráticas”, elas recuperaram a igualdade política inventada pelos gregos e ainda enfrentaram o desafio de estender a cidadania aos grupos que dela estavam excluídos em Atenas.

Embora não tenham instituído regimes democráticos bem acabados imediatamente, essas revoluções, afirma Belinelli, lançaram as bases da democracia moderna como a entendemos hoje.

Seguindo a ordem cronológica, a Revolução Inglesa, no fim do século 17, teve como principal resultado a instituição do Bill of Rights, um documento fundamental para a democracia na medida em que estabeleceu a concepção de que o governo deve se ancorar no consentimento do povo e de que seu poder deve ser limitado pelos direitos dos cidadãos.

Já a Revolução Americana, consumada com a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, teria dado duas contribuições centrais para a democracia moderna. Primeiro, estabeleceu, de forma até então inédita, o princípio da igualdade como fundamento de uma ordem política. Segundo, permitiu que o povo se autogovernasse, indiretamente, por meio de seus representantes, o que inaugurava uma diferença crucial com a participação direta da democracia ateniense.

Por fim, a Revolução Francesa se distinguiu das duas últimas por uma “ênfase no social”, nas palavras de Belinelli, pois colocou o princípio da igualdade no centro de suas preocupações. O imperativo de superar a divisão entre nobres e plebeus inspirou um conjunto heterogêneo de contribuições que se tornariam chave para a instituição da democracia como projeto civilizatório.

Entre elas, se destacaram a de Jean Jacques Rousseau. Ao questionar a ideia de uma natureza humana fixa e imutável, ele abriu caminho para a profunda transformação da sociedade como um meio para o desenvolvimento moral e cultural da humanidade.

“A igualdade natural deixava de ser um pressuposto filosófico ou um princípio para se converter em um programa político”, notou Belinelli, e orientaria o momento de maior radicalidade do processo revolucionário francês, sob a liderança de Maximilien Robespierre.

Essas revoluções teriam permitido, portanto, que as parcelas desfavorecidas da população lutassem pela ampliação do círculo democrático. Um processo que passou pela constituição de partidos com programas igualitários e fortes vínculos com suas bases sociais e que culminou, em meio ao desenvolvimento do Estado de bem-estar social, na Europa, com o auge da experiência democrática moderna, entre 1945 e 1975, momento em que a democracia, seguindo a imagem da parábola usada no livro, começou a decair.

No último tempo da democracia, André Singer apresentou as duas hipóteses levantadas na obra para explicar os motivos da sua crise contemporânea.

A primeira delas diz respeito aos efeitos sociais e políticos do neoliberalismo, cuja hegemonia na orientação das políticas econômicas já dura 40 anos e vem revertendo a expansão dos direitos da cidadania e desfazendo as bases do Estado de bem-estar.

De um lado, o neoliberalismo promoveria a fragmentação da classe trabalhadora —que contempla a maioria da sociedade que vive da renda do seu trabalho— e a sua precarização.

Segundo Singer, cada vez mais, "os trabalhadores não têm jornada fixa de trabalho, não têm local de trabalho comum. Não existe mais o que poderíamos chamar de cidadania do trabalho e condições para a emergência de uma consciência de classe. As pessoas estão atomizadas”.

Por outro lado, o neoliberalismo estaria deixando de fora da democracia elementos de soberania popular que poderiam impedir o seu próprio desenvolvimento. O melhor exemplo seria a aprovação, recente no Brasil, da autonomia do Banco Central, de tal maneira que o resultado das eleições já não pode influenciar boa parte da política econômica. Seria, segundo Singer, um sinal claro de “esvaziamento da democracia”, percebido por eleitores que passam a não mais acreditar no regime.

Nesse contexto, têm chegado aos governos forças de extrema direita que “erodem a democracia por dentro”. E, embora Donald Trump tenha perdido as últimas eleições nos Estados Unidos, sua derrota foi muito estreita. O fenômeno deitou raízes sólidas, inclusive no Brasil, e precisaríamos compreendê-lo.

No livro, os autores buscam na explicação da filósofa Hannah Arendt para o totalitarismo dos anos 30 elementos para entender o espectro regressivo que volta a ameaçar a democracia. Na Alemanha, o nazismo teria se alimentado do grande número de pessoas que não partilhavam um pertencimento de classe— soldados que, depois da guerra, não se encaixavam na sociedade, desempregados que não encontravam mais trabalho, empresários falidos que não conseguiam se reerguer etc.

Para Singer, a massa, que serviu de base para o totalitarismo dos anos 30, guarda semelhanças com o que o neoliberalismo tem produzido. Seria crucial, então, “agir e pensar um modo de resgatar a igualdade, a liberdade e a fraternidade que, como disse Shakespeare, são as pérolas que o passado nos legou. Para isso escrevemos esse livro”.

Depois das apresentações, o debate seguiu com perguntas de Patrícia Campos Mello aos autores. Em primeiro lugar, ela questionou se poderíamos estabelecer paralelos entre o atual governo brasileiro e os regimes totalitários e fascistas do século passado.

Em resposta, Araujo alertou para o fato de que a história não se repete, mas sugeriu que a extrema direita contemporânea contém alguns elementos que a aproximam do fascismo. O principal deles, registrado no livro, diz respeito à ideia de um processo de subversão da democracia que ocorre por dentro dela.

Diferentemente de golpes de Estado, em que os círculos mais altos da sociedade se organizam para fechar o regime, o fascismo e os governos regressivos de hoje consistem em uma “revolta da massa contra a democracia”, cuja origem seriam as dificuldades da última em responder aos feitos do neoliberalismo e a “perda de confiança do povo em uma forma em que ele deve ditar o destino da comunidade”.

Mello não deixou de perguntar também sobre a recente entrada do ex-presidente Lula no cenário eleitoral e se devemos caminhar para a repetição da eleição plebiscitária de 2018.

Para Singer, ainda é cedo para especular o que vai ocorrer em 2022. Mas, mesmo que o segundo turno oponha, mais uma vez, Bolsonaro a um candidato do PT, o cenário não teria as mesmas características de 2018.

“Porque a sociedade já terá vivenciado quatro anos de um governo de extrema direita. Naquele momento, não estava claro o que seria. Agora, a sociedade está experimentado, da pior maneira possível nos últimos dias, o que alguns analistas avisaram em 2018. Mesmo que ocorra a mesma situação, a eleição vai ser muito diferente.”

Por fim, Singer ainda fez questão de criticar a falsa ideia de polarização entre, de um lado, Bolsonaro e seu governo e, do outro, Lula e o PT. Segundo ele, é incorreto falar em polarização se apenas um dos lados radicaliza.

Não há duas posições extremadas, afirmou, mas apenas uma. “Lula sempre foi conciliador e é importante deixar isso claro para termos compreensão racional do que está acontecendo.”

O cenário, portanto, é muito diferente daquele dos anos 30 do século passado, quando havia, de fato, dois projetos claramente antagônicos e alternativos à democracia. No extremo oposto do nazismo, o socialismo crescia enquanto movimento popular ao redor do mundo.

Hoje, a extrema direita nadaria de braçada porque não há outro projeto que dispute a desconfiança do povo na democracia, o que abre, segundo Singer, a possibilidade de uma “grande unidade democrática”.

Resta saber, no entanto, algumas coisas. Primeiro, se ela vai se viabilizar. Segundo, como notou Araujo, se ela vai promover a volta ao antigo normal, que permitiu a ascensão da extrema direita ao não atacar os efeitos do neoliberalismo sobre a igualdade. Ou se vai estabelecer algo diferente, capaz de reconstituir o círculo democrático e as suas devidas tensões.

Estado e Democracia: Uma introdução ao estudo da política

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