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Casos de HIV positivo paralisam indústria pornô do país, avessa à camisinha

Nos bastidores, estrelas se dizem apavoradas, e produtoras menores interromperam filmagens por falta de elenco

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Ricardo Feltrin
São Paulo

Foram confirmados três casos de atrizes pornô que tiveram testes de HIV positivos em São Paulo, principal polo erótico no país.

A situação praticamente paralisou a indústria nacional de filmes do gênero, que está sendo obrigada a revisar a prática de sexo sem preservativos em cena. Produtoras menores, grandes fornecedoras de conteúdo para plataformas nacionais e estrangeiras, interromperam gravações por falta de elenco. Nos bastidores, atores pornô se dizem apavorados com a situação.

Cena do filme 'Love', filme de Gaspar Noé, exibido no Festival de Cannes de 2015 - Divulgação

Duas das atrizes infectadas tinham participado de cenas de sexo grupal com troca de parceiros em outubro de 2021. O vídeo era produzido para o canal de um dos participantes na plataforma XVideos. Além delas, figuraram na produção outros quatro atores, cujos resultados para um teste de HIV realizado no ano passado foram negativos —eles a princípio fazem novos testes este mês. Ninguém usou camisinha.

Semanas antes, uma dessas atrizes havia participado de uma cena com uma intérprete para a produtora HardBrazil —também sem proteção. Foi dessa atriz o primeiro resultado positivo para HIV.

Desde então, e até dezembro, todos os atores envolvidos gravaram cenas com outros parceiros, seja para alimentar seus canais pessoais ou para produtoras menores.

Vale notar que não é possível afirmar que as infecções ocorreram dentro das gravações. Afinal, o elenco também pratica sexo em suas vidas privadas, fora do alcance das câmeras.

Produtoras menores têm como prática exigir dos atores a realização de exames de HIV antes das gravações. No dia das cenas, eles então compartilham seus resultados uns com os outros.

Algumas dessas produtoras, como a HardBrazil, dizem não adotar preservativos em suas gravações porque sobrevivem da exportação de seus filmes. E "ninguém compra lá fora se tiver camisinha", diz Fábio Silva, CEO da empresa. "Essa prática ocorre não só no Brasil, mas na produção de filmes eróticos em todo o mundo. Nós tomamos todos os cuidados possíveis dentro do nosso alcance, porque estamos lidando com vidas e profissionais."

Segundo Silva, "nunca houve um caso de contaminação, nem mesmo de gravidez na HardBrazil".

Infectologistas consultados pela reportagem consideram "totalmente errada" a prática de sexo desprotegido na indústria, independentemente de o elenco apresentar exames de HIV negativos. Segundo eles, todos podem estar enquadrados na chamada "janela imunológica", isto é, podem já ser portadores e transmissores do HIV mesmo sem a confirmação da presença do vírus nos exames.

"Um exame negativo para HIV não tem grande valor quando realizado recentemente. Uma pessoa pode estar infectada e apresentar resultado negativo", diz o médico e professor mineiro Rodrigo Molina, um dos maiores especialistas em Aids do país, acrescentando que um exame realizado logo após a relação sexual também não tem qualquer serventia. "A positividade ocorrerá após duas semanas ou mais."

Ele afirma que no período após uma exposição de risco, devem ser evitadas relações desprotegidas. Isso não acontece, no entanto, segundo os profissionais do ramo —atores pornô fazem filmes com frequência semanal, às vezes mesmo diária.

Segundo o infectologista Valdir Sabbag Amato, a prática da indústria é "um absurdo". Ele reforça os alertas de Molina. "Usar o preservativo é a maior das seguranças. Esses atores e atrizes estão se expondo a um risco imenso", diz ele.

Casos como os três recentes provavelmente jamais teriam acontecido nas duas maiores produtoras de filmes eróticos do país, SexyHot —também um canal na televisão— e Brasileirinhas. Isso porque elas não só exigem exames de HIV como também o uso de preservativos em suas produções.

Procurado, o SexyHot, administrado pelo Grupo Globo e a Playboy Brasil, afirmou à reportagem que em julho do ano passado decidiu ainda não comprar mais nenhum filme nacional que não faça uso de preservativos. Fontes próximas afirmam, no entanto, que a resolução aconteceu em janeiro deste ano, após vazar a informação de que havia atores infectados com HIV, e que a empresa negociou filmes nacionais retratando sem proteção nos últimos meses de 2021.

Já a Brasileirinhas encaminhou à reportagem um comunicado enviado a todos os atores que já trabalharam na empresa afirmando que o uso de camisinha é obrigatório em suas produções desde 2014. Segundo a casa, a última vez que adquiriram um filme de terceiros sem uso de preservativos foi em 2015.

"Estamos com muitas meninas falando mal do pornô como um todo, dizendo que se arrependem (de ter feito). Todas as meninas tomavam PrEP [sigla para Profilaxia Pré-Exposição ao HIV, método de prevenção do vírus que consiste na ingestão diária de um comprimido e que tem taxa de eficácia de 90% contra a infecção, segundo o governo] e achavam que estavam protegidas e podiam transar sem camisinha e às vezes até sem exames, em suas vidas privadas", diz o texto.

Ambas as produtoras, porém, têm em seus acervos milhares de filmes sem uso de preservativos que seguirão disponíveis ao público. Os filmes estrangeiros —sem camisinha— também continuarão a ser adquiridos.

Apesar de estarem no topo da indústria pornô do país, o número de produções do SexyHot e da Brasileirinhas é baixo se comparado ao das demais produtoras. Cada uma produz apenas cerca de cinco filmes por mês, enquanto as outras 15 que compõem o mercado cinematográfico nacional erótico são responsáveis por mais de cem filmes mensais. São elas a HardBrazil e a BM —de porte médio— e outras companhias minúsculas, além de atores que produzem e estrelam seus próprios títulos para o XVideos ou o Onlyfans.

Procurada pela reportagem, a representante brasileira da XVideos, informou que a plataforma não tem responsabilidade sobre os conteúdos publicados na sua rede e que não comentaria o assunto.

Caso de HIV parou a indústria pornô americana há 11 anos

Em agosto de 2011, a indústria de filmes eróticos dos Estados Unidos parou totalmente depois que um dos seus artistas recebeu um diagnóstico positivo de HIV. Ele nunca teve o nome divulgado.

A interrupção das filmagens foi acompanhada por todas as grandes produtoras do setor, então preocupadas com a repercussão do caso.

Meses mais tarde, porém, tudo voltou a ser como era antes. Nos Estados Unidos, a prática é que os atores façam testes para o HIV mensalmente, mas também não existe qualquer obrigatoriedade de uso de preservativos.

Tanto que não foi a primeira vez que um caso do tipo ocorreu. Um ano antes desse caso, o ator Derrick Burris também contraiu HIV em uma gravação e passou a militar pelo uso de camisinha em todos os filmes.

Até hoje, porém, sua luta e a de organizações não governamentais de saúde são ignoradas. Há vários projetos de lei nos Estados Unidos que buscam criar uma lei que obrigue o uso de preservativos na indústria pornô, mas eles sofrem com o lobby do mercado, bilionário.

Segundo a estimativa mais recente desse ramo, de cinco anos atrás, essa indústria movimentaria cerca de US$ 15 bilhões por ano só nos Estados Unidos. Lembrando que naquele ano plataformas de streaming como XVideos, XHamster ou OnlyFans, responsáveis pela explosão do consumo de vídeos eróticos, ainda não eram tão difundidas.

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