Descrição de chapéu Cinema

Em 'A Jaula', Alexandre Nero é 'cidadão de bem' saído do esgoto da era Bolsonaro

Suspense que tem ainda Chay Suede no elenco marca estreia na ficção do diretor João Wainer

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

"Quando entra alguém, eu consigo travar as portas à distância, pelo telefone. Aí não dá mais para abrir por dentro", avisa, via Bluetooth, uma voz grave e pausada. A voz, ainda mais soturna, carregada de sadismo, continua. "O carro é completamente blindado, à prova de som. De fora, ninguém vê. A única forma de você sair é usando a chave que, obviamente, está aqui comigo."

A voz é do doutor Henrique, interpretado por Alexandre Nero, um ginecologista que já foi roubado mais de 20 vezes. Movido pela indignação, o médico transforma minuciosamente sua Pajero em uma armadilha infalível. Quem cai na arapuca ultratecnológica ao tentar roubar o rádio do carro em uma tranquila rua de São Paulo é Djalma, papel de Chay Suede.

As portas e os vidros do veículo são, de fato, indevassáveis para o desespero de Djalma, sem água nem comida. Está armado, portanto, o circo de crueldades sob a batuta do doutor Henrique, que se considera "um cidadão de bem e homem de Deus".

É inegável que tudo ali parece coisa nossa, bem ao estilo da desigualdade social brasileira, mas o filme "A Jaula" se baseia no roteiro dos argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat, conhecidos por aqui por longas como "O Homem ao Lado", de 2009, e "O Cidadão Ilustre", de 2016. O suspense teve, entretanto, adaptações à realidade nacional a cargo de João Cândido Zacharias.

"A Jaula", que entra em cartaz nesta quinta-feira, marca a estreia na ficção de João Wainer, aos 46 anos. Fotógrafo deste jornal e, mais tarde, diretor de documentários como "Pixo", de 2009, e "Junho: O Mês que Abalou o Brasil", de 2014, produzido pelo jornal, Wainer foi convidado a assumir a condução do filme pela produtora TX, da qual se tornou sócio mais adiante.

"Queriam que fosse um diretor estreante e eu acabei sendo premiado com esse roteiro. Os argentinos são os melhores em roteiro", afirma Wainer. "E botamos uma camada de Brasil em cima. A apresentadora sensacionalista, interpretada pela Astrid Fontenelle, não está na versão original. É ela quem conduz a catarse da violência."

O longa-metragem foi rodado no final de 2018, mas é provavelmente mais atual hoje do que há três anos. "Filmamos bem na época da eleição presidencial e imaginávamos como seria o Brasil sob esse novo governo. Nossa aposta, infelizmente, se mostrou real, com Bolsonaro estimulando esses malucos a agir com vingança, a fazer justiça com as próprias mãos", diz o diretor.

"É absolutamente natural um cara ficar com raiva de ser assaltado. E ele tem o direito, se quiser, de matar o bandido, desde que seja na cabeça dele. O que não pode é executar o plano, não é?"

Segundo Wainer, figuras como o doutor Henrique —ressentidos, brutais, extremistas— não se limitam aos círculos que dão apoio ao ocupante do Planalto. "A cada 20, 30 anos, pessoas assim saem do esgoto, apavoram todo mundo e depois voltam para o esgoto. Mais tarde, retornam para nos infernizar."

Por mais repugnante que seja o personagem, Alexandre Nero busca nele sinais de humanidade. "Eu parto do princípio de que todos os personagens estão em mim, nos porões e nos céus que habitam em mim", afirma o ator, de 52 anos. Ele observa ainda um traço de psicopatia no médico, dado o excesso de frieza.

Embora o filme busque se afastar do confronto simplista do bem contra o mal, Nero diz acreditar que seu personagem será visto como um herói por boa parte dos telespectadores. "Conheço muita gente que bate palma para esse tipo de ação. Precisamos nos lembrar do país em que a gente está, não é um país afetuoso."

A experiência no jornalismo ajudou Wainer a compreender o Brasil de que Nero fala, é esse o país que se revela sob as camadas de tensão de "A Jaula".

O diretor se lembra de quando, aos 19 anos, foi fotografar o cineasta Cacá Diegues. "Eu disse a ele que queria um dia trabalhar com cinema. O Cacá talvez nem se lembre, mas ele me falou ‘posso te dar uma dica? Fica no jornalismo por um tempo. Vai para a rua, vai conhecer o mundo, essa experiência será muito útil quando você resolver filmar’."

Cacá Diegues estava certo. "Muito da vivência que eu tive na rua me ajudou nessa estreia na ficção. Levei para o filme o que vivi no jornalismo", conta Wainer.

A Jaula

  • Quando estreia nesta quinta, 17 de fevereiro
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Chay Suede, Alexandre Nero e Mariana Lima
  • Produção Brasil, 2021, 1h41 min
  • Direção João Wainer
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.