Descrição de chapéu
Renato Terra

'Cidadão Ilustre' traz reflexão sobre qual é o papel do artista

Filme de Mariano Cohn e Gastón Duprat conta a história de um escritor que se prepara para receber o Nobel de Literatura

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A cena inicial de “Cidadão Ilustre” apresenta as questões do filme. Daniel Mantovani, um escritor argentino consagrado, se prepara para receber o Nobel de literatura. É apresentado como um gênio que criou uma obra universal escrevendo sobre o imaginário da província que cresceu em Buenos Aires.

Mantovani agradece o prêmio e discursa: “Tenho a sensação de que esse tipo de reconhecimento unânime se relaciona, inequivocamente, com o declínio de um artista. Esse prêmio revela que minha obra coincide com os gostos e necessidades de júris, especialistas, acadêmicos e reis. Obviamente, eu sou o artista mais cômodo pra vocês. E essa comodidade tem muito pouco a ver com o espírito que uma obra artística deve ter”.

A cena seguinte é a de um flamingo boiando morto num lago. Uma narradora anuncia todos os prêmios que ele ganhou. E depois passa a dizer que suas participações foram canceladas.

Em sua suntuosa casa em Barcelona, Mantovani nega uma sequência de honrosos convites para homenagens, palestras, condecorações. Mas fica balançado com uma cartinha que o convida para retornar a Salas, sua cidade natal, para receber o título de "Cidadão Ilustre".

Mantovani lembra que a única coisa que fez na vida foi escapar da cidade. Há 40 anos que não retorna. "Meus personagens nunca puderam sair e eu nunca pude voltar ".

O contraste da vida de um intocável em Barcelona com o cotidiano provinciano é tratado com muito humor. Logo ao desembarcar, ainda no estacionamento do aeroporto, Mantovani é recebido por um motorista num carro antigo que pede para ele sentar na frente "porque não tem licença de taxista".

O carro, claro, enguiça. E Mantovani tem que acender uma fogueira no mato usando páginas de seus livros.

Três pessoas comemorando
Oscar Martínez vive um escritor argentino que volta à terra natal em 'O Cidadão Ilustre' - Divulgação

Os papéis de parede, vasos, quadros, cortinas de seu hotel, os personagens e seus figurinos, cada detalhe carrega os contrastes do provincianismo. Mantovani é recebido pelo prefeito e desfila em carro de bombeiro. Concede uma hilária entrevista à TV Cooperativa.

Mas a cordialidade inicial vai se transformando. Os moradores se vêem na narrativa dos livros que levaram Mantovani ao sucesso enquanto elas ficaram esquecidas ali em Salas. Acham, portanto, que Mantovani tem uma dívida com elas. Todos querem um pedaço dele. Favores, problemas mal resolvidos no passado, invejosos, aproveitadores vão brotando a cada esquina.

Os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat conduzem muito bem a ironia do culto à personalidade e trazem algumas questões interessantes. O contraste entre a realidade provinciana e a cidade imaginária que Mantovani criou em sua obra é explorada de diversas maneiras. Assim como a questão levantada inicialmente no filme: um artista deve agradar ou incomodar?

Lá pelo meio do filme, Mantovani verbaliza algumas dessas questões. "Hoje sou uma figura ilustre. Embora muitos não saibam por quê. Uma espécie de herói que você saca do armário e tira o pó para que se apresente em algum evento cultural e faça um pequeno discurso. Para depois voltar a guardá-lo no armário. Um destino definitivamente de província para alguém que há mais de 30 anos tentou escapar justamente disso. Para herói me falta algo fundamental. Minha própria morte”.

A imagem do flamingo morto volta, de forma surpreendente, no final. Uma cena trágica que não perde sua beleza.

Uma dica: na última cena do filme, repare na lapela de Daniel Mantovani.

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