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Cinema

'Drive My Car' constrói em Hiroshima um belo monumento à destruição

Filme que concorre ao Oscar flutua para a partir da linguagem chegar ao extermínio em trama que se passa na cidade arrasada

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São Paulo

Drive My Car

  • Quando Estreia na quinta (17) nos cinemas e em 1º de abril na Mubi
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Hidetoshi Nishijima, Toko Miura, Masaki Okada
  • Produção Japão, 2021
  • Direção Ryusuke Hamaguchi

Há muita coisa a ver (e ouvir) em "Drive My Car", de tal modo que é difícil fazer a seleção quando a observação é rápida. Mas podemos começar pelos idiomas. Os personagens falam em japonês, inglês, mandarim, coreano e pela linguagem dos gestos. Existe ainda uma rápida menção ao russo.

Como essas línguas podem conviver num palco ou nos ensaios de uma peça? Eis uma das questões que parecem inquietar Ryusuke Hamaguchi aqui, mas não sei se chego a compreender sua inquietação. Considerando que a montagem se passa em Hiroshima, um símbolo da capacidade humana de destruição, parece um apelo à necessidade de aproximação entre humanos, à tentativa de se entenderem apesar da diversidade não só entre idiomas, culturas e nações, mas também entre as pessoas.

Há muito a ver e ouvir. A fala é essencial no cinema de Hamaguchi, que parece às vezes ser outro rohmeriano, embora de originalidade absoluta. As personagens falam. Suas histórias quase sempre nos remetem ao passado. Nos fazem lembrar que o cinema, embora arte vinculada ao presente, não existe sem um passado.

pôster de filme
Detalhe de pôster do filme 'Drive My Car', dirigido pelo japonês Ryusuke Hamaguchi - Divulgação

E passado é o que se narra. Kafuku, diretor teatral (o cinema não existiria sem que houvesse teatro antes), carrega em si a morte súbita da mulher, Oto. Esta, por sua vez, carregava a morte da filha, aos quatro anos, 17 anos antes, depois do que terminou a felicidade conjugal —mas não o casamento e nem mesmo o amor entre ambos.

Misaki, a motorista que leva o diretor, não é diferente —tem suas memórias. É em Hiroshima que se passa o essencial da trama, portanto num verdadeiro monumento à destruição e à memória.

Kafuku vai para lá a fim de ensaiar e montar o "Tio Vânia" de Tchekov, que conhece profundamente. Dois anos se passaram da morte de Oto e a vida segue. No teatro, a vida como que se bifurca —ela é representação da vida que incide sobre a própria vida. Notamos isso em cada expressão, em cada silêncio de Kafuku. Ele vive ou sobrevive? De todo modo, não consegue mais fazer o papel de Tio Vânia —o texto de Tchekov obriga cada espectador (que dizer então de cada ator) a ir ao fundo de si mesmo. E o ator é alguém que se duplica —é ele mesmo e um outro. Será uma questão central do filme.

Vemos então como o filme flutua. Podemos partir da linguagem e chegar à destruição, se se quiser. O filme nos leva a vários estágios. "Drive My Car" quer dizer "me conduza em movimento". Mas para onde? Não por acaso é a motorista Misaki, que ele tanto reluta em aceitar (pois gosta de ele mesmo dirigir seu carro), quem se torna, afinal, a protagonista do filme (junto com ele) e mais até do que o jovem ator que deve fazer o papel de Vânia na montagem —e mais do que Oto, que permanecerá como protagonista oculta (já que morre na primeira parte do filme), pois é em torno dela, de sua lembrança, de sua história e dos remorsos que sente, que vive Kafuku.

Misaki o levará à usina de lixo (lixo que lembra a ele a neve). E mais tarde ao lugar em que nasceu. A motorista tem 23 anos, a idade que teria a filha de Kafuku se não tivesse morrido. Misaki introduz o tema da mentira na história (toda representação, teatral ou não, pode ser assimilada à mentira, como fazer dela uma verdade é crucial). Ela desestabiliza tudo o que se fala naquele carro apenas com seu olhar, que vemos refletido no retrovisor.

Ela viverá a cena que melhor resume o filme. Em dado momento, ambos começam a fumar dentro do carro (o que Kafuku não consentia antes). Ela abre a capota e põe a mão para cima. Ele a imita. Um plano tomado do exterior mostra os dois braços, lado a lado, os cigarros acesos, numa espécie de comunhão, enquanto a brasa do cigarro, tão visível, se transforma em cinza

A partir dessa comunhão é que Misaki poderá introduzir o tema da verdade (complementar ao da mentira, claro) —não somos apenas um; somos ao menos dois. Aquele que nos ama é o mesmo que nos fere —é algo que devemos aceitar. Teoricamente, Kafuku deveria, como ator, ensinar isso aos outros. Mas agora é Misaki quem dirige o carro e o leva à compreensão de certos fatos passados.

E de que, sim, existem as cinzas, a destruição, a morte. Antes disso há muito por viver e tornar vivo —nosso destino é a vida, com suas dores e alegrias.

Só como um lembrete —embora "Titane" seja um belo filme, é inconcebível para mim que tenha ganho a Palma de Ouro deixando para trás "Benedetta" e "Drive My Car".

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