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'Titane', na Mostra de SP, mostra transa com carro em horror maneirista

Longa vencedor da Palma de Ouro em Cannes mostra diretora talentosa, mas algo presa à referência de David Cronenberg

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Titane

  • Quando Mostra de SP: sex. (29), às 18h20, no Espaço Itaú Frei Caneca; seg. (1º/11), às 21h40, no Cine Marquise
  • Elenco Agathe Rousselle, Vincent Lindon e Garance Marillier
  • Produção França, 2021
  • Direção Julia Ducournau

O nome é "Titane", mas poderia muito bem se chamar "Titan@", conforme a moda atual de eliminar gêneros e buscar uma língua neutra, à inglesa. No entanto, quase tudo em "Titane" gira em torno da ambiguidade sexual. É, aliás, o que o filme de Julia Ducourneau tem de original em relação a seu mestre David Cronenberg.

Tirando isso, "Titane" parece um remake de "A Mosca". Mas a diferença é significativa. Enquanto as desgraças de Seth Brundle, vivido por Jeff Goldblum, decorrem de um problema na máquina de teletransporte que imaginou, as criadas por Ducourneau surgem de um acidente automobilístico, após o qual um menino recebe no cérebro uma placa de titânio e, ao sair do hospital, some de cena.

Aí a primeira dúvida –menino ou menina? Nessa idade é difícil distinguir. Reencontramos Alexia, anos depois, como uma bela modelo-dançarina com traços um tanto masculinos, cujo número consiste em simular o ato sexual no exterior de um automóvel. Entendamos, é como se estivesse tendo uma relação com o carro. Dá para pensar, então, que quem vimos na infância era uma menina.

Ninguém pense, porém, que Alexia, por ser mulher, possa ser assediada na maior só porque seu número é erótico. A um fã mais insistente ela responde enfiando nele a agulha com que prende seus cabelos. Essa agulha será usada ainda muitas outras vezes e, sabemos, já foi usada outras tantas.

O filme se define melhor quando Alexia tem uma relação com uma colega de trabalho. Primeiro lhe acaricia um seio com a boca, depois arranca o piercing que ela tem no seio com uma mordida. É aflitivo de ver, admitamos, mas é o momento em que a sexualidade de Alexia aparece com mais clareza –não são homens nem mulheres que a atraem, mas os metais. É o metal do automóvel com quem simula o ato sexual, do piercing que arranca da colega.

Sabemos então que Alexia é a mulher-metal, uma mutante à exata maneira de Cronenberg. Depois de cometer vários crimes ela já tem até retrato falado num jornal. É quando ela se converte em Adrien e vai em busca do pai, um chefe de bombeiros, interpretado por Vincent Lindon. Fantástica transformação que devemos talvez ao departamento de maquiagem, mas certamente à atriz Agathe Rousselle, que faz com a mesma desenvoltura os papéis de Alexia e o de Adrien, a bela jovem que parece um garoto e o belo rapaz com feições femininas.

Em ambas as situações, digamos, sua força é descomunal, titânica mesmo. É nesse jogo que o hermafroditismo da personagem se afirma, embora nunca se defina. A mulher-metal é que desponta, pouco a pouco, à medida que sua gravidez é mais evidente e já podemos nos perguntar o que, afinal, seu ventre engendrará. Como se vê, muita coisa aqui remete a Cronenberg, o que não é novidade para ela, que, numa entrevista, diz que até declarou seu amor ao canadense pessoalmente.

Talvez seja raro uma quase estreante (está em seu segundo filme) ganhar a Palma de Ouro em Cannes —e com um filme de terror—, mas isso aconteceu, para não ir longe, com Anselmo Duarte e seu "O Pagador de Promessas".

Em relação a Cronenberg, digamos, a diferença geracional se manifesta com clareza. Ela dá continuidade a esse gosto um tanto maneirista que marcou a geração de Luc Besson e Leos Carax na França, embora não faça do trabalho com efeitos uma preferência. De todo modo, aquele jeito um tanto sem compromisso, bem geração 1968, do David Cronenberg dos anos 1970 e 1980 não parece fazer parte da influência que recebeu do mestre canadense.

Da mesma forma, se o terror faz parte do repertório cronenberguiano, é só uma parte de algo que se pode definir, mais amplamente, como cinema fantástico, uma ambiguidade que faz dele um moderno. Já Julia Decourneau se filia ostensivamente, ao menos por enquanto, ao cinema de gênero, tendo o horror como opção (notemos que não é um filme para todas as sensibilidades).

Com "por enquanto" tento dizer que essa Palma de Ouro talvez seja uma premiação um tanto prematura para uma cineasta sem dúvida dotada de talento e domínio da encenação, porém cuja personalidade não parece ainda de todo definida. É como se, para tanto, devesse ainda cortar o cordão umbilical que a vincula ao pai Cronenberg com a mesma intensidade que Alexia-Adrien se sente ligada a Vincent, o pai bombeiro chefe de bombeiros.

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