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Francis Kéré, arquiteto ativista, levou o Pritzker sem fazer espetáculo

Primeiro negro e africano a receber Nobel de arquitetura começou com uma escola primária em sua aldeia

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Fernando Serapião

É crítico de arquitetura e editor da Monolito

Foi anunciada na manhã desta terça-feira a escolha do burquinense Diébédo Francis Kéré para receber o prêmio Pritzker —considerado o Nobel da arquitetura. A notícia não pegou de surpresa quem acompanha o setor. Há alguns anos que o nome de Kéré integra enquetes com leitores de sites especializados entre os candidatos mais bem votados a próxima edição do prêmio.

Como nem sempre a opinião do público coincide com o da crítica, pelo conjunto da obra em si, talvez ainda não fosse o momento —sua trajetória ainda não atingiu o ápice. Por outro lado, decididamente, passou o momento de sinalizar uma mudança de postura em relação à dinâmica da arquitetura.

O vencedor do prêmio Pritzker deste ano, Diébédo Francis Kéré - Lars Borges/AFP

Como o próprio Pritzker já indicou nas últimas edições, é necessário reequilibrar aspirações, jogando luz sobre o compromisso social e abandonando a arquitetura do espetáculo —que o próprio prêmio promoveu no passado recente—, de museus dos países ricos e seus arquitetos midiáticos, brancos ou japoneses. Neste sentido, Kéré é um notável acerto do júri, que inclui o diplomata brasileiro André Corrêa do Lago.

E não digo isso por ele ser negro e africano. Mas não deixa de ser simbólico o fato de ser duplamente o primeiro a receber a láurea —o primeiro negro e o primeiro africano. Quem corria por fora com os mesmos predicados, sendo da mesma geração, era David Adjaye, filho de diplomata ganês que vive desde os oito anos em Londres. Por isso mesmo, e pelos prédios espetaculares que faz, Adjaye tinha muito mais a cara do Pritzker antigo.

O que diferencia os dois, com mérito para o foco sobre Kéré, é sua história, postura e método. Aos 56 anos de idade, sendo um sobrevivente, ele é um arquiteto ativista com extrema responsabilidade social. Nasceu numa aldeia sem água nem luz elétrica com menos de mil habitantes.

Se a taxa de alfabetização de seu país —Burkina Fasso, na África Ocidental— era de 25%, ele foi o primeiro de sua aldeia a ir à escola. Para estudar, andava 40 quilômetros até a cidade vizinha. Seu pai, que era o chefe da aldeia, queria que o filho mais velho estudasse simplesmente para escrever suas cartas.

A dificuldade fez o menino se mudar, aos sete anos, para a casa de um tio que vivia próximo a escola. Com 20 anos, nova mudança o levou para Berlim, graças a uma bolsa de estudos para aprender carpintaria. Ele se exercitou fazendo móveis e telhados. Mais dez anos e outra bolsa de estudos foi o passaporte para ingressar numa prestigiada faculdade de arquitetura na Alemanha, onde se diplomou aos 39 anos.

Em vez de não olhar mais para trás, fincando os dois pés na Europa, Kéré criou pontes com a África. Com a ajuda de amigos da faculdade idealizou uma fundação para construir edifícios em sua aldeia. O primeiro projeto que fez, iniciado ainda na universidade, foi justamente uma escola primária em sua aldeia.

Com três salas de aula, uma isolada da outra, o pequeno edifício possui cobertura que parece flutuar sobre os volumes fechados com alvenaria de argila. O projeto é, ao mesmo tempo, simples e sofisticado. Simples pela forma, materiais e custo, e sofisticado pela aplicação de conhecimentos construtivos e sustentáveis.

Mas o ponto central é a inclusão dos usuários no processo, fazendo com que eles participem de cada etapa. Aí está a chave da arquitetura de Kéré, que encanta e inspira. Construída com recursos que ele arrumou batendo na porta de fundações europeias, a escola foi premiada e pôs a aldeia no mapa da arquitetura. Mais importante do que isso, ela cresceu —atendia inicialmente 150 crianças e ganhou novos blocos com desenho dele. Hoje tem capacidade para receber até 700 estudantes.

A fama internacional de Kéré foi meteórica e se tornou incontornável em 2017, quando desenhou o pavilhão de verão da Serpentine Gallery, em Londres. Hoje ele possui obras em quase uma dezena de países, dos Estados Unidos a Mali.

Entre os premiados pelo Pritzker, ele é o que tem a trajetória profissional mais curta, tendo se formado há só 18 anos. O mérito da juventude entre os medalhistas continua com o chinês Wang Shu, que recebeu a láurea aos 49 anos, sendo seguido pelo chileno Alejandro Aravena, meses mais velho. Não podemos esquecer que ambos integram o júri que distinguiu Kéré, colaborando para arejar o ambiente.

Entre premiar alguém consagrado e iluminar quem tem energia, o júri acertou ao optar pela segunda alternativa. Neste caso, há o risco destacar um projetista que pode perder o foco, tropeçando na exposição midiática e o assédio de novos clientes.

Kéré terá que tomar cuidado, porque já tem algumas ciladas na prancheta, das quais tem plena consciência —ele projetou a nova sede do Parlamento de seu país e a Assembleia Nacional do Benin, que está em construção.

Como se sairá com a aproximação com o poder? Diante do desafio, ele declarou ao jornal britânico The Guardian estar feliz e assoberbado, mas lembrou a responsabilidade que o prêmio traz. "A minha vida não ficará mais fácil."

Por ora, é esperar a cerimônia, sempre abrigada em um local especial. Com as cicatrizes que marcam seu rosto, expondo um antigo ritual de sua cultura, Kéré vai receber a medalha no Marshall, prédio novo da Escola de Economia e Ciência Política de Londres. É uma cerimônia de gala, seguida de jantar, convidados especiais, como reza a cartilha do grand monde. Mas creio que nada disso vai comover o arquiteto como a alegria da festa que as crianças da escolinha de sua aldeia vão aprontar.

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