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Dziga Vertov só pôde inventar até Stálin tomar as rédeas da revolução

Volume organizado por Luís Felipe Labaki mostra como diretor brilhou enquanto a revolução soviética não se conhecia

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Dziga Vertov é de um tempo em que o cinema ainda não sabia o que era, e por isso era completamente livre (para ficar mais ou menos com a concepção de Jean-Luc Godard). Ou seja, ele começa no cinema mudo e em plena Revolução Russa.

Ali desenvolverá a ideia de que o cinema é um olho, mas um olho dinâmico, capaz de ver e registrar aquilo que o olho humano não vê. Essa ideia começa a se desenvolver ainda no início da Guerra Civil que definirá o destino da Rússia de 1917 até pelo menos o final do século passado.

capa de livro
Cena do filme 'Um Homem com uma Câmera', de Dziga Vertov, que estampa capa do livro 'Cine-Olho: Manifestos, Projetos e Outros Escritos', organizado por Luís Felipe Labaki - Divulgação

Nesse momento, o cinema não sabia o que era. A Revolução também não. Mas Vertov —ou Viértov, como sugere uma transliteração mais recente— sabia exatamente o que queria: registrar a vida cotidiana. Isso o levou a, no calor da hora, produzir uma magnífica "História da Guerra Civil" (material enfim reencontrado, restaurado em 2021 e exibido no último festival É Tudo Verdade). Isso também o levou a destacar-se durante os debates ferozes que caracterizaram os primeiros anos revolucionários.

Vertov ficou em absoluto segundo plano no Ocidente pelo menos até o Maio de 1968 francês, quando seu nome foi reencontrado pelo Grupo Dziga Vertov, portanto por ele: Jean-Luc Godard.

É verdade que Vertov, em seus escritos, parece passar à margem da questão que mais inquietava seus colegas dos anos 1920 —a montagem. Ele mesmo escreveu: "Dziga Vertov encarna a posição teatral mais extremada no cinema soviético. Ele abole toda e qualquer representação e só reconhece como válidas as filmagens ao natural".

Por natural entenda-se o documentário. A oposição pode parecer ingênua hoje, em que documentário e ficção estão condenados à convivência. Mas é por aí que "Cine-Olho: Manifestos, Projetos e Outros Escritos" começa nos introduzir no magnífico cipoal histórico-cinematográfico que permeou a obra e a existência do cineasta. O volume tem quase 700 páginas. Calhamaço precioso, organizado, traduzido, introduzido e anotado por Luís Felipe Labaki.

Ele nos conduz, em seus primeiros anos, à radicalidade de um olhar: "Nós nos chamamos 'kinocs' por oposição aos cineastas". "Kinoc", explica o jovem Labaki, deriva de "kino" (cinema) e "ôko", palavra antiga para designar olho. Tratava-se, como diz Vertov em um poema, de "ver a maçã como Newton". O cinema pode nos ensinar a ver aquilo que não vemos, mas que já está lá.

A partir daí dedicou-se, junto com seus cinegrafistas, à produção de cinejornais, dos quais extraiu material para seus longas-metragens, inclusive "Um Homem com um Câmera" (1929), considerado sua obra-prima.

Dedicou-se polemicamente, diga-se, participando ativamente dos debates cinematográficos e desdenhando do que considerava concubinato entre a literatura e a imagem: "O roteiro literário, nós não queremos nem ouvir falar sobre essas porcarias". E pouco depois: "O drama cinematográfico é o ópio do povo" —isso tudo em letras bem maiúsculas.

O volume deixa uma impressão ambígua sobre os filmes de Vertov dos anos 1920 e sua recepção: ora ele mesmo se entusiasma com a aceitação do público ao seu trabalho, ora refuta os adversários, críticos ou cineastas.

O diretor soviético Dziga Vertov, nascido na Polônia e autor de clássicos como 'Um Homem com uma Câmera', de 1929 - Austrian Film Museum/Divulgação

Vertoviano ou não, o cinema russo daqueles anos era uma aventura intelectual contínua e a experimentação também contínua parecia uma extensão dos pensamentos dos cineastas. Vertov, para começar, pretendia-se criador de "cine-objetos"; defendia também que os "filmes naturais" (entre cinejornais e educativos) ocupassem 75% da programação dos cinemas, deixando aos dramas ficcionais os restantes 25%.

Essa audácia sem limites repercutirá em "Entusiasmo" (1931), em que levava o cinema sonoro bem longe. Como sustenta Labaki, "o cinema documentário levaria ainda algumas décadas para tornar corriqueiro o tipo de registro ‘in loco’ realizado pelos 'kinocs', e o tratamento não naturalista dos sons captados pode ser visto como um antepassado direto da música concreta".

Depois disso, a obra de Vertov segue os rumos da história soviética, ou seja, do stalinismo e da Segunda Guerra. Ele se dobra à necessidade de fornecer roteiros e vê-se cerceado não raro, mesmo seu "Três Cantos sobre Lênin" parece um pálido reflexo das ousadias anteriores. A Revolução já sabia o que era, ou ao menos pensava saber. Vertov sobrevivia.

Cena de 'Entusiasmo', do diretor soviético Dziga Vertov - Austrian Film Museum/Divulgacao

De volta a Labaki: "Entre 8 e 13 de janeiro de 1935, transcorreu a Conferência Criativa de Toda a União dos Trabalhadores da Cinematografia Soviética [...] os principais realizados da década de 1920, como Eisenstein, Viértov, Pudovkin e Kulechov passaram a ser considerados envelhecidos".

Vertov começa a mostrar-se então um mestre na árida arte da sobrevivência. Durante o congresso faz "um sutil aceno amigável" a Sergei Eisenstein —de "O Encouraçado Potemkin"—, até então seu feroz adversário, mas junta-se "ao incontornável coro de aprovação a ‘Tchapaiev’".

Ora, "Tchapaiev" foi a quintessência do stalinismo cinematográfico, expressão central do realismo socialista. Stálin substituía a velha experimentação pelo herói revolucionário, capaz de encher os cinemas. Uma crítica no "Pravda" não era mais sinal de aprovação ou reprovação do crítico, mas a opinião oficial podia significar condenação ao silêncio ou até à morte.

Que o diga Dmitri Chostakóvitch, alvo de um editorial do "Pravda" em 1936 chamado "Caos ao Invés de Música". Ali ele era acusado de dirigir-se exclusivamente a "estetas formalistas que perderam o bom gosto". Pior: essa "deformidade esquerdista" e suas "inovações" levam "a um distanciamento da verdadeira arte".

Talvez esse controle da produção artística tenha desembocado na ambiguidade da proposição que parece central em "Canção de Ninar", em roteiro de 1937: "Não ver nada/ não ouvir nada/ não falar nada". Ou, bem ambíguo, o projeto de "Retrato de um Líder", de 1939. Sabe-se quem era o líder.

Nessa altura, os encontros e confrontos já não se dão com os colegas cineastas, mas com os burocratas. Vertov foi aos poucos deixado de lado. Morreu em 1954, de câncer, tendo sobrevivido por 11 meses após a morte de Stálin.

Por sorte, com Stálin ou sem, os russos conservaram o hábito de preservar toda documentação possível, escrita, filmada ou fotografada. Em grande parte graças a isso é que podemos nos encontrar com esse volume essencial para quem se interesse pela arte, o cinema e a história da URSS.

Cine-Olho: Manifestos, Projetos e Outros Escritos

  • Preço R$ 124 (706 págs.)
  • Autoria Dziga Viértov
  • Editora Editora 34
  • Tradução, organização e notas Luís Felipe Labaki
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