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'O Filme da Sacada', no É Tudo Verdade, cansa antes de encantar

Documentário polonês com técnica que coloca povo em cena em longa não deixa de sugerir um exercício interessante

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São Paulo

O Filme da Sacada

O "povo fala" —esse método de apuração muito usado como introdução em reportagens de TV— é sempre um mano a mano com o destino, já que o repórter fica à mercê de quem encontra por acaso para comentar um assunto de interesse público, em busca do senso comum.

Não é estatística, mas certas prisões de tempo e espaço podem ser muito valorosas, como sempre reiterou o documentarista Eduardo Coutinho em seus "Seis Dias no Ouricuri", a virada do ano em "Babilônia 2000" ou as três semanas no "Edifício Master".

Pois Pawel Lozinski partiu dessa técnica óbvia, inescapável para qualquer estudante de jornalismo —e confortável, de certa forma—, para arriscar um "povo fala" em longa-metragem com os pedestres que passam em frente à sua calçada.

Cena do documentário "O Filme da Sacada", exibido no É Tudo Verdade de 2022
Cena do documentário 'O Filme da Sacada', exibido no É Tudo Verdade de 2022 - Divulgação

Porém, neste "O Filme da Sacada" —com exibição online no É Tudo Verdade neste domingo (3)— em vez de a câmera invadir um espaço alheio, aqui, fixa em um plongée (enquadramento de cima para baixo). Ela só devora o que lhe é próximo, ocasional, e no papel não deixa de ser um bom exercício.

Entretanto, como o cineasta reconhece logo nos primeiros planos, há um mundo vivo para além dos limites do quadro, no que parece ser a cena mais interessante do trabalho.

Uma garota anda de patinete e se detém à esquerda do quadro. Vemos apenas os losangos da calçada cinza, uma faixa de grama e a cerca metálica da casa do cineasta, elementos que permanecerão quase inalterados ao longo do filme.

Fora do quadro, uma criança chora, provavelmente irmã daquela, que corre em sua direção, deixando o brinquedo de duas rodas cair. Ouvimos os pais ajudando a criança e, quando a outra volta para recuperar seu patinete, uma idosa surge no quadro. Ambas saem de cena quase simultaneamente.

Há um duplo sentido muito evidente. O documentário retrata "a torre de marfim" da qual falava Mario de Andrade —paradoxal observatório de isenção e resistência—, mas também quer ser um filme que se abre ao "povo" polonês.

É nesse choque que a obra parece se perder, tentando ser um diário franco (não faltam cenas em que o cineasta exibe a dificuldade de arrancar qualquer fala dos pedestres, temos montagem cronológica com a passagem das estações et cetera) e um catálogo de sabedorias populares.

E, se a proposta pode despertar a atenção no começo, aos poucos, as passagens reveladoras vão ficando espaçadas em um filme que se arrasta por quase uma hora e 40 minutos. Nas mãos de um estudante, seria um curta, mas poderia ir além se tivesse uma edição mais precisa.

Claro, a falha, o vazio têm seu lugar. Há até uma referência clara à natureza do documentário na junção das partes. Ao falar de um mundo incontrolável, é um gênero sempre insuficiente. Como um deus (daí o plongée) que depende de sua criatura, o filme precisa de suas ausências. Sem falar na onipresente cerca que retoma a invasão da Polônia que iniciou a Segunda Guerra Mundial —assim como a atual invasão da Ucrânia é um alarme global.

Muito se atravessa num filme dessa ordem, mas basta dizer que —colocando o "povo" de volta em cena— o longa cansa antes de encantar. Algo raro, já que boas propostas costumam se esgotar no meio de caminho.

O diretor até insiste, mas não evolui uma suposta universalidade. Não nomeia o bairro (claramente um de classe média de Varsóvia), tampouco se esforça nos diálogos, apostando na linguagem fática ("me diga algo sobre você", "qual o sentido da vida", "como vai"). Se uma conversa é uma troca de equivalências, aqui a transação é justa e a distância se mantém na maioria dos casos (sem falar de certas liberdades que beiram os limites éticos).

As declarações se dividem entre dificuldades cotidianas, amenidades e toda sorte de confissões criptografadas —afinal, por que um povo notavelmente fechado deveria expor sua vida de maneira prolixa e "de graça" para a câmera?

Ainda podemos sair do filme lembrando da idosa rabugenta que se arrepende de não ter demonstrado todo o amor pelo marido morto, ou imaginando o que aconteceu com um homem de meia idade recém-saído da cadeia. Ou ainda ver um fino senso de humor fatalista de uma senhora que só tem ideias sobre a morte e espera "uma onda de engenhosidade".

Nesse balaio, os mais jovens (exceto as crianças), adaptados às redes sociais, são aqueles mais dispostos a expor a vida sem consequências. Outro grupo que desembesta a falar são radicais nacionalistas e xenófobos, que saem desfilando em uma comemoração nacional, celebrando o clássico "Deus, pátria e família" contra as "liberdades gerais", com um discurso ensaiado.

"Tudo passa", já cantava Nelson Ned. "O Filme da Sacada" teria mais chances de ficar na memória se tivesse mais rigor, não se fiasse aos pequenos prazeres do realizador e, quem sabe, tivesse um pouco mais de sorte para enfrentar o acaso.

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