Filmes do É Tudo Verdade explicam Putin e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia

Festival de documentários exibe 'Navalny', sobre opositor político envenenado, e longas sobre a história da região

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Cena do documentário

Detalhe de cartaz do documentário 'Navalny', exibido no É Tudo Verdade de 2022 Divulgação

São Paulo

O noticiário em chamas com a guerra na Ucrânia também aumenta a temperatura do É Tudo Verdade, maior festival de documentários na América Latina, que começa nesta quinta-feira com uma seleção de 77 filmes. O gênero, afinal, extrapola o entretenimento, é uma ferramenta poderosa para aprendermos sobre a nossa história e entendermos, também, o que está acontecendo no mundo à nossa volta.

Amir Labaki, fundador e organizador do evento, sempre que uma edição está para começar, lembra que o documentário é um gênero dinâmico, capaz de refletir os dilemas de seu tempo e registrar aquilo que nos aflige com rapidez.

E o que não falta na lista desta 27ª edição são filmes que nos últimos anos se debruçaram sobre a escalada de poder de Vladimir Putin ou a ascensão de ideias autoritárias no leste europeu, que com o lançamento em meio ao conflito, acabam por oferecer um mergulho profundo e conveniente em suas raízes.

Cena do documentário "Navalny", exibido no É Tudo Verdade de 2022
Cena do documentário 'Navalny', exibido no É Tudo Verdade de 2022 - Divulgação

Com potencial de ser um dos longas mais concorridos do É Tudo Verdade, "Navalny" é um deles, e está na competição de longas-metragens internacionais. Dirigido pelo canadense Daniel Roher e premiado no Festival Sundance, o filme acompanha os meses seguintes ao envenenamento de Alexei Navalni, principal opositor político de Putin na Rússia.

"A história dele é possivelmente a mais extraordinária que eu já ouvi, é algo que poderia ter sido escrito por Shakespeare", diz o cineasta por telefone.

"É sobre um homem que desafia um líder poderoso, é envenenado, sobrevive à tentativa de assassinato e renasce das cinzas de sua experiência de quase morte só para voltar ao seu país e para as garras do leão. Quando soube da história, entendi imediatamente que ela daria um ótimo documentário de suspense."

"Navalny", de fato, deixa o espectador tenso, já que nunca sabemos quando a filmagem de Roher pode ser interrompida por alguma nova tentativa de calar o opositor russo.

Ao longo do documentário, vemos como a mulher de Alexei Navalni penou para conseguir tirar o marido da Rússia quando ele entrou em coma devido ao envenenamento. Na Alemanha, os médicos confirmaram que havia uma toxina em seu corpo, algo que os russos negaram. A substância era justamente Novitchok, uma herança da União Soviética.

Já recuperado, Navalni montou uma equipe que tentou rastrear seus envenenadores, chegando, então, a sujeitos ligados a Moscou que, num simples trote, entregaram de bandeja a história. O opositor voltou à Rússia logo depois, teve sua organização de combate à corrupção rotulada de extremista e proibida, e, na semana passada, foi condenado a nove anos de prisão.

"Foi claramente um julgamento encenado. E tudo isso que acontece na Rússia, e agora na Ucrânia, é assustador, fruto de um regime tirânico que tem silenciado qualquer oposição", diz Roher. "Eu espero que esse filme também converse com os brasileiros, durante o festival, porque o contexto político de vocês, que passaram por uma ditadura e agora têm um presidente que não respeita a democracia e a mídia, tem tudo a ver com o que acontece em solo russo."

Por vezes descrita por opositores como uma guerra pessoal de Putin, movida a anseios que remontam aos anos de império e de União Soviética, o conflito na Ucrânia é só uma parte da relação complicada da Rússia com seus vizinhos. Outros documentários do É Tudo Verdade, por sua vez, se voltam a esses países e exploram seus laços históricos com Moscou.

"O Processo - Praga 1952", outro longa internacional em competição, ressuscita a velha Tchecoslováquia e um julgamento encenado que opôs líderes do partido comunista local e aqueles leais a Moscou, nos anos 1950. Segundo sua diretora, a francesa Ruth Zylberman, a guerra em curso hoje é fruto de um novo tipo de imperialismo, que espelha o protagonismo desproporcional que os russos tinham na época de União Soviética.

"Eu preferiria que meu filme não fosse tão atual", diz ela, que é de ascendência ucraniana e polonesa. "Quando eu propus esse filme, eu sabia que falaria de um julgamento antigo, esquecido, mas ao mesmo tempo que tem relação com países como Rússia, China e até o Brasil, já que é sobre como a verdade é manipulada no debate político."

"O Processo" deriva de uma investigação que encontrou gravações originais do julgamento de Rudolf Slanski e outros 13 opositores, mais tarde restauradas e, agora, narradas tanto por imagens de arquivo, quanto pelos filhos e netos daqueles que foram condenados falsamente.

Zylberman diz que é um documentário que questiona a verdade, algo que foi ignorado no julgamento de 1952. "Se a mentira fundamenta uma sociedade, ela eventualmente destrói tudo à sua volta, de relações familiares a diplomáticas. É exatamente o que estamos vendo hoje na Rússia, uma pessoa com justificativas que são como um câncer, corrompendo tudo ao redor."

Da Belarus, vem "Manual", curta sobre a brutalidade empregada contra os manifestantes na ressaca da eleição presidencial do país, também herança do autoritarismo na região, e, da própria Rússia, "A História da Guerra Civil". Parte da nova sessão de clássicos do É Tudo Verdade, o filme recuperado no ano passado mostra o desenrolar do conflito entre os bolcheviques e seus opositores, logo após a Revolução de Outubro de 1917.

Outro longa exibido de forma especial é "Relações Próximas", que acompanha a viagem do cineasta Vitali Manski, em 2014 e 2015, à Ucrânia, para visitar parentes. Sua câmera, em conversa com eles, explica a crise política que abatia e continua abatendo o país, com separatistas que são hoje usados por Putin como justificativa para a guerra.

Nem sempre há disputa nas relações mostradas no É Tudo Verdade, no entanto. Em "Os Caras do Estreito", por exemplo, vemos uma cooperação entre engenheiros tchecos e russos para construir um túnel de cem quilômetros que liga a Rússia aos Estados Unidos –o que não seria bem visto no atual contexto de estranhamento entre as duas nações.

Já "O Filme da Sacada" ajuda a compreender melhor a sociedade polonesa –que, também vizinha da Rússia, ligou o sinal de alerta com a invasão da Ucrânia e tem defendido sanções mais duras a Moscou. Mas é inofensivo, mesmo funcionando como um bom retrato daquela gente.

Até o Brasil entrou na onda de documentários didáticos para o momento. Em "A Ordem Reina", que compete entre os curtas nacionais, Fernanda Pessoa passeia por diversas experiências revolucionárias ocorridas no século 20, algumas vinculadas ao status de relacionamento da Rússia com seus vizinhos. Ao som dos dizeres da filósofa marxista Rosa Luxemburgo, ela nos leva a refletir por que, afinal, brigamos tanto hoje.

Esses e outros filmes ganham exibição gratuita, presencial e online, até o dia 10 de abril. O É Tudo Verdade ainda tem na programação debates, palestras, homenagens e, claro, seu tradicional prêmio, que pode levar alguns desses títulos para a consideração dos votantes do próximo Oscar.

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